sexta-feira, 11 de abril de 2008

Um Olhar Mil Abismos



PRIMEIRO DIA


Entrei naquele Café com a intenção de tomar uma bica no quarto de hora que ainda me sobrava, antes de começar a aula de História de Arte. Era um Café que, com certeza, abrira naquele mesmo dia, pois, embora a rua fosse dar a um beco sem saída, sempre que ia para a Faculdade a curiosidade obrigava-me a espreitar para lá e nunca antes me tinha apercebido da sua existência.

Nem sei bem o que me levou a entrar, talvez empurrada pela surpresa de encontrar, pela primeira vez na vida, um Café aparentemente vazio à uma e meia da tarde de um dia de semana normalíssimo. Seria suposto estar a abarrotar de gente a comer e a falar demasiado alto.

Tornava-se ainda mais suspeito o facto de não haver mesas espalhadas, apesar do espaço disponível, e do balcão estar deserto, embora tivesse vários bancos de pé alto, bem alinhados. Não só não se via um único cliente, como não havia sinal de empregados. Olhei em volta, preparada para me ir embora, e deparei com um local pouco comum para um mero Café. A decoração, pouco usual, baseava-se em objectos de aspecto antiquíssimo que pareciam ter mais de um século de existência, mas era abafada por plantas e flores que me eram totalmente desconhecidas, mesmo sendo os meus conhecimentos botânicos motivo de orgulho pessoal. Pairava no ar um cheiro indefinido que tanto podia derivar de uma qualquer essência invulgar expelida por alguma daquelas pétalas, como simplesmente do pó que se podia ver acumulado, quer no chão, quer a envolver os objectos. Curiosamente, só as plantas é que estavam impecavelmente lustrosas.

Não sei quanto tempo fiquei ali especada. Acho que a certa altura perdi a noção de onde estava. Limitei-me a ficar parada no meio da sala.

Passado uma infinidade de minutos, notei que continuava sozinha naquele lugar estranho que me fazia mergulhar nas minhas mais bem guardadas recordações quando me apercebi de uma música suave, acompanhada por um odor diferente, quase imperceptível, mas irresistível. Foi então que reparei na porta de madeira preta, minúscula, incrustrada a um canto de uma das paredes, como se não pertencesse ali e tivesse sido abandonada há muito tempo. Uma teia de aranha, admiravelmente fina e brilhante, parecia ser a única separação entre o que essa porta misteriosa guardava e o mundo que me rodeava. Afastei o delicado rendilhado de prata, empurrei suavemente a pequenina porta misteriosa e entrei.

Dei dois passos e estaquei, envolta numa sensação muito estranha, o tempo parecia ter sido interrompido. Encontrava-me numa sala a que logo, com a habitual necessidade dos seres humanos de rotularem tudo, atribuí a designação de Salão de chá. Esta era constituída por pouco mais de meia-dúzia de mesinhas redondas, com esculturais pernas de ferro, pintadas de verde escuro e tampos de mármore rosa. Três criados, impecáveis, iam e vinham, equilibrando bandejas doiradas na mão esquerda. Só passado um instante reparei que os empregados, contrariamente às pessoas que se encontravam sentadas em redor das mesas, se vestiam de uma forma peculiar que me fazia recuar vários séculos e pensar nas gravuras dos meus livros de História quando ainda andava no Liceu.

Um acorde mais agudo, proveniente da música que me atraira até ali, fez-me despertar da espécie de sonho que me envolvera desde o momento em que penetrara naquele mundo admirável. Procurei ansiosamente descobrir de onde provinham os sons melodiosos que ecoavam por toda a sala. Não só não consegui levar a cabo os meus intentos em relação à música, como também não fui capaz de descortinar a origem da luz suave que envolvia todo o ambiente e lhe dava um aspecto de doçura excêntrica, simultaneamente assustadora e irresistível. Dei-me por muito feliz quando, por fim, descobri algo de diferente; o odor suave e doce, que tanto despertara a minha curiosidade, nascia de uma planta ou melhor, de umas florzinhas côr de fogo, espalhadas por toda a sala. Um vapor discreto era expirado através das suas pétalas, lembrando um enamoramento surrealista entre o Sol e a Lua. Reparei, então, que, embora pudesse parecer improvável, era também delas que partia a luz suave que envolvia a sala. Aquela planta aparentava ser a geradora da própria vida dentro do Salão; fornecia luz e odor e não me admirava nada que fosse ela igualmente a responsável pela temperatura aconchegante e morna que me estonteava.

Se não abrandasse o ritmo cardíaco do meu espantado coração, ainda ia dar por mim a pôr em causa todas as teorias científicas do início da vida e a acreditar que aquelas flores tinham tido alguma coisa a ver com isso. Antes que alguém tivesse a veleidade de me ler os pensamentos achei mais saudável pôr-me em marcha, para disfarçar.

Olhei em volta e avancei para a única mesa que se encontrava desocupada. Sentei-me. Logo um dos criados se aproximou de mim e perguntou, delicadamente, o que eu desejava. Ficou curiosamente baralhado quando lhe pedi uma italiana. Ao princípio não compreendi a sua atrapalhação. Olhava-me com uma expressão que o desfigurava e permanecia ali, parado à minha frente, direito, sem o mínimo movimento, como que paralisado. À espera, não sabia bem do quê. Já estava vermelha como um tomate, devido ao desconforto de ver ali o estranho rapaz à espera de nada quando a minha cabecinha pensadora, finalmente, compreendeu o motivo para tal atitude.

- Desculpe …. Queria um café, por favor!

Com uma expressão de profundo alívio agradeceu-me, fez uma vénia ligeira e desapareceu, como que por encanto.

A única explicação racional para tudo o que me rodeava só podia ser a de ter entrado, sem saber bem como, numa dimensão completamente original, num tempo que não o presente, tempo esse que de certeza absoluta não era nem o meu, nem o de ninguém meu conhecido. Mas o mais grave era a sensação que não me largava de estar a ser exposta insensivelmente face a um futuro que não compreendia, mas que a minha imaginação teimosamente tentava delinear.

Olhei em volta e comecei a estudar avidamente os meus vizinhos, tarefa relativamente facilitada, pois entre cada mesa havia só o espaço suficiente para uma pessoa passar. Todos conversavam, uns mais animados do que os outros. Por vezes até se ouvia um ou outro gritinho mais ousado, só que as vozes não se ouviam ou eram abafadas pelo doce murmúrio da música que os envolvia. Nesse aspecto senti-me repousada.

Na mesa logo à minha direita, encontravam-se três velhinhas, sentadas diante de um serviço de chá digno de um museu, a beberricar. Entre os pequenos golinhos no chá, iam bichanando aos ouvidos umas das outras e de vez em quando emitiam risinhos que, a confiar nos meus olhos, deveriam ser muito estridentes, isso se se chegassem a ouvir … . Pelas palavras soltas, que os meus ouvidos incompreensivelmente conseguiam captar, falavam das suas experiências amorosas do passado.

À minha esquerda, um pouco mais escondido, entre a coluna de mármore que parecia sustentar todo o tecto e uma planta que lançava impertinente as suas longas folhas no espaço, encontrava-se um casal, ainda jovem, que se olhava com ternura, sem que parecesse poder ser perturbado por nada. Ele pegava-lhe na mão com visível timidez. Ela baixava os olhos, como que para esconder a sua atrapalhação por ser objecto de tamanho afecto, demonstrado em público. E assim ficaram, mãos entrelaçadas, sem uma palavra, sem qualquer sinal de comunicação verbal. Pode parecer loucura, mas os pensamentos dele faziam ricochete nas paredes da Sala, e só eu é que os parecia ouvir. Juras de amor que, sabia, nunca iriam ser cumpridas, palavras de paixão que não chegariam nunca a sair dos seus lábios, pedidos de ajuda que nunca seriam formulados. Ela tinha uns olhos fantásticos onde tudo estava escrito, ilusões de uma vida que nunca viria a acontecer, esperanças de felicidades que morreriam repetidas vezes, antes de sequer chegarem a nascer.

Tudo naquela sala me começava a sufocar. Desesperadamente, desviei o olhar numa busca ansiosa de alguma normalidade.

Nessa minha travessia, dei de caras com um homem que estava sozinho e silencioso. Tivémos uma brevíssima troca de olhares, uma daquelas situações que nunca se tem a certeza absoluta de ter realmente acontecido, tal a rapidez com que passa por nós.

Preparei-me para o estudar, cuidadosamente. Estava sentado na mesa atrás da minha cadeira (para tal tarefa tão complicada tinha a ajuda de um grande espelho pendurado numa parede, mesmo em frente dos meus olhos). Tinha uma careca lustrosa. Estava eu entretida nas minhas análises fisiológicas quando fui despertada por um inoportuno tossicar, levantei os olhos e dei de caras com o criado que me trazia o café numa cafeteirinha de prata… . Agradeci-lhe e a minha voz ecoou por toda a sala, como se estivesse ali completamente sozinha. Espantada, constatei que à minha volta nada mudara, as mesmas pessoas ocupavam as mesmas mesas, ninguém me olhava, era como se eu não existisse ou me deslocasse simplesmente num outro tempo, num outro espaço. Reparei que a música mudara ligeiramente e agora acordes profundos, ainda mais suaves, enchiam a Sala e pareciam acariciar tudo o que nela se encontrava.

Subitamente, uma leve brisa encheu o ar com um doce aroma a jasmin. Foi então que, pela primeira vez, me apercebi da presença da rapariga que se sentara, silenciosa, na minha mesinha, talvez por acaso ou por aquela cadeira ser, aparentemente, a única disponível no Salão. Embora estivesse ali tão perto de mim, à distância de um esticar de braço, nem a ouvira chegar. Debruçada sobre uma folha de papel branco, de costas tão arqueadas que quase parecia estar em posição fetal, escrevia intensamente, sem que nada a pudesse interrompesse. Do meu lugar só conseguia ver o seu cabelo abundante que caia, pesado, sobre a mesa e descortinar os seus traços delicados, vincados pela angústia do seu escrever. Fixei a minha atenção nela e, sem que compreendesse através de que efeitos telepáticos, (visto que o seu corpo ocultava a folha em que escrevia), os seus pensamentos fundiram-se com os meus e todos os seus sentimentos, transpostos para o papel, me invadiram como uma onda. Foi então que, inexplicavelmente, sem ver sequer uma palavra da sua escrita, a minha mente começou a debitar-me o que ela escrevia:


Olá Minha Amiga,

Finalmente posso contactar contigo! Hurra !!!!!!!

Estava a ficar desesperada, sem ter com quem falar. Desculpa lá ser tão abrupta, mas tenho de te contar já o que me aconteceu, senão rebento. Nem sei como hei-de começar.

Onde raio é que andáste durantes estes milhares de segundos com o teu apaixonado suiço, enquanto eu sofria aqui à espera de te poder chatear com as minhas maluquices? Vais ter de me contar tudo ao mais ínfimo pormenor. Mas mais tarde, agora é a minha vez.

Tudo aconteceu ou, melhor, começou a acontecer, logo no dia seguinte à tua partida para a Suiça …! Estava já à seca havia, pelo menos, uma hora, na sala de espera daquele dentista maluco, lembras-te, onde nós nos conhecemos, há um bom par de anos, quando eramos miúdas ??. Bem, como não tinha levado nenhum livro e, sinceramente, não estava com paciência para as corriqueiras revistas de fofoquices, pus-me a pensar na vida em geral, apenas banalidades, e, em particular, no que me iria acontecer quando fosse obrigada a mostar os dentes ao estupor do médico que, como bem te deves recordar, nada tem de carinhoso. Mas isso não é minimamente importante no que tenho para te contar.

Vamos ao que importa. Estava eu nesta semi-inconsciência quando a porta do consultório se abriu e de lá surgiu um espécimen masculino digno de nota, espantosamente bem disposto, com o seu andar ginasticado, logo (per)seguido pela assistente do Dr. Tiradentes, aquela irritante loiraça boazona, lembras-te ?. Toda ela sorrisos e bamboleios. Armada em difícil, limitei-me a observá-lo, no seu fatinho castanho à iupy, sem grandes entusiasmos. Até porque, desgraçadamente, era chegada a minha vez da tortura. Já não tinha safa possível. Levantei-me, corajosa, preparada para tudo, e logo que entrei na sala das torturas percebi porque é que o borracho estava com um ar tão descontraído; é que não havia água e, como deves saber, estas brocas modernas não funcionam a seco. O tipo tinha, assim, conseguido escapar-se ao martírio. Aproveitei a deixa em que ninguém reparava em mim (como sempre aliás) e despedi-me com o meu melhor sorriso, se bem que nenhuma das jeitosas da recepção me tenha prestado a mínima atenção, tal o êxtase perante aquele irradiante charme masculino. Encolhi os ombros, indiferente perante tanta mulherice e apressei-me a sair dali para fora, após marcar o encontro doloroso para uns dias mais tarde. Sabes como eu sou, contra os homens demasiado apreciados pelas outras. É tudo uma questão de conhecer os meus limites, para não me arriscar a fazer figura de parva.

Insegura, já perto da porta da rua, assustei-me quando ele surgiu, não sei de onde e, galante, me abriu a porta, com um sorriso de orelha a orelha. E que sorriso. E que olhos. Até fiquei sem ar… . Estou perdida minha amiga!

Ela parou de escrever e ergeu a cabeça. Pela primeira vez parecia ter reparado em mim, aliás, até ficou espantada por partilhar aquela minúscula mesa com alguém. Como se me tivesse acabado de ver, sorriu ligeiramente, não mais do que um breve trejeito de lábios. Observei os seus olhos que se tentavam esconder por detrás dos óculos, eram tão profundamente castanhos e tristes que me impressionaram. Olhei com mais atenção aquela cara tão fechada. Era uma cara que me parecia familiar, mas não conseguia situar na minha memória onde a tinha encontrado anteriormente. O seu olhar era um pedido de ajuda, como o de quem não compreende quando é que a vida a atingira de forma tão fulminante.

Abri a boca com a intenção de lhe dizer algumas palavras reconfortantes, mas antes que tivesse conseguido emitir qualquer som, a porta por onde entrara momentos antes (horas, minutos?) fechou-se, como por magia, com um ruído que ecoou por toda a sala. O mais curioso é que só eu é que parecia ter ouvido aquele barulho, pois todos os meus companheiros, naquele cenário onírico, continuavam nas suas mesas, descontraidos, sem o menor sobressalto.

Dei com os olhos do meu vizinho, o homenzinho careca que despertara a minha atenção pouco depois de me sentar. Tinha uma figura aparentemente insignificante, embora estivesse vestido de forma impecável, até ao mais ínfimo pormenor; fato completíssimo, cinzento escuro, com risquinhas finíssimas, mais claras, colete côr de sangue, com cornucópias delineadas a oiro, lenço ajustado ao pescoço com um rubí esplenderoso e no dedo mindinho da mão esquerda, um anel de brasão imponente. Ele olhava na minha direcção, mas o seu olhar trespassava-me, como se eu não existisse no seu ângulo de visão. À medida que o seu olhar me ia trespassando, a sua mente parecia querer comunicar com a minha. Tive de fechar os olhos, na esperança de, assim, não compreender os pensamentos que aquele homem me transmitia. Esforço em vão. Uma brisa gelada percorreu todo o meu corpo, como uma mensagem lançada do outro lado da vida. Estremeci. Como um flash, toda a existência daquele homem me atingiu, o seu passado e o seu presente instalaram-se na minha memória, sem que nada pudesse fazer para o evitar. Fiquei estarrecida com os seus pensamentos:

Pensar no Henrique, e viver para ele todos estes anos, condicionou a minha vida particular, para não dizer que desestabilizou todo o meu sistema nervoso central e periférico. Amá-lo e desejá-lo, sem conseguir ocultar esses sentimentos tão avassaladores, acabou por destruir parte da minha vida profissional. No meu emprego, todos me tratam educadamente, mas, sobretudo os homens, mantêm o que se pode chamar uma distância de segurança, como se fosse portador de alguma doença contagiosa. Passados 10 anos desta não relação tão intensa e desgastante, dou por mim vazio de vontades, oco de desejos, perdi a capacidade de ser feliz e já nem sei como o tentar. Dei toda a minha força a um homem que, no fundo, nunca soube receber, nem sequer apreciar a vida. Acabei por não o ter, nem a ele, nem a mais ninguém. A verdade é que já nem sei bem o que tenho dentro de mim, se um vazio inesgotável que me deixa perdido neste abismo sem fundo que é a minha vida, se um atabalhoar de sentimentos, sensações e desesperos surdos e contraditórios. Se conseguisse transportar-me para fora de mim próprio e me visse do outro lado do espelho, convenientemente, certamente ficaria desesperado com os indícios bem visíveis da queda e da frustração em que me encontro neste momento, uma espécie de suicídio psicológico. Confesso que me sinto a elouquecer, embora disfarce o melhor possível o meu desequilíbrio, para bem da minha família. E ainda a acrescer as minhas angústias, o raio da responsabilidade familiar, como cabeça de casal, em que estupidamente me meti… .E que rica cabeça que eu saí. Já nem me lembro bem porque acedi a casar. Aliás, nem eu, nem ela. Até já chegámos ao ponto de concordarmos que não temos nada em comum, além dos filhos. Talvez tenha acabado por casar para agradar aos meus pais e descansá-los de algumas suspeitas que lhes ensombravam a existência.

Sem que eu me tenha apercebido, a minha vida, a partir de certa altura, transformou-se num cumular de desistências, numa ansiedade em agradar aos outros, esquecendo-me de mim, das minhas próprias necessidades e carências. Acabei por deixar de saber o que realmente quero desta vida e o que sinto por ela. Depois, para ensombrar ainda mais a minha existência, vieram os filhos, não só um, mas um casal deles. E mais uma vez, lá permiti que a minha mulher e os meus pais orientassem a minha vida, e sempre com boa cara, sem cenas, nem fitas., como manda a etiqueta.

Olhando para trás, para o meu passado, a realidade é que desde bastante novo, algo pareceu não bater certo na minha maneira de ser. Quando tinha 16 anos, a minha mãe, muito contrafeita, levou-me a um psiquiatra por achar que, definitivamente, não estava bem. Lembro-me que uma das razões que a levou a tomar essa atitude tão radical, foi por me vestir, todos os dias e invariavelmente, de preto, dos pés à cabeça, e por gostar de ser o manequim oficial para todas as roupas novas da minha irmã mais velha. Mal sabia a pobre da minha mãe que, muito antes dessa fase, já lhe fora à gaveta da roupa interior e experimentara toda a lingerie, nas longas tarde que passava sozinho em casa, depois de vir da escola.

Mas lá fui eu parar ao psiquiatra, de muita má vontade. Logo a abrir, na primeira consulta, o médico disse-me que, tal como na lenda da Rainha Santa Isabel, eu escondia algo no regaço, só que no meu caso, nem eram rosas para o meu amor, nem sequer pãezinhos para os pobres, mas sim espinhos, para quem não consegui compreender. Credo!. Aquela comparação teve, desde logo, o condão de quase provocar um ataque cardíaco à minha mãe. Comparar o seu filho querido com uma mulher, mesmo tendo esta sido uma rainha santa, era demasiado para ela. No meu caso, o que me assustou verdadeiramente, foi ouvir da boca de uma pessoa que, a acreditar no diploma emoldurado e pendurado na parede mesmo à minha frente, tinha estudado profundamente estes “males” da mente, a afirmação convicta de que o que eu tinha para oferecer aos outros não passava de um monte de espinhos. E eu que me considerava o supra-sumo da compreensão e da generosidade. Isto é, tinha a mania que era esperto. Mesmo assim, percorri todo o caminho típico do tratamento psiquiátrico de choque; comecei pelos comprimidos, ou melhor dizendo, pelos anti-depressivos, que tinham o condão de me secar a boca e me provocavam tremuras nas mãos, nas circunstâncias mais incómodas, ao ponto de não conseguir acertar com o garfo da comida na boca. Ainda me lembro da cena mais embaraçosa que me sucedeu. Estava com os meus pais num daqueles almoços especialmente enfadonhos, mas cuja representatividade social ascendia ao nível de ministro, quando a meio da segunda garfada de arroz de pato, a minha mão esquerda começou a tremer de tal forma que o arroz se espalhou por toda a mesa. Todos os circundantes tentaram, com a maior das delicadezas, fazer de conta que nada de extraordinário acontecera, contudo alguns tiveram certa dificuldade em controlar o seu desagrado, para não dizer repulsa, ao encontrarem bagos de arroz dentro dos copos do vinho tinto mais caro do cardápio.

Resumindo e concluindo, nunca mais fomos convidados para nada. Mas a verdade é que tenho de concordar que durante esse período até andei calmo e obediente, de tal forma que parecia um cordeirinho obediente. Passado um tempo, quando aparentemente já estava suficientemente domado e adaptado ao mundo exterior que me rodeava, começaram as palestras. O que pretendia ser um diálogo entre médico e doente mental, não conseguiu, nunca, ultrapassar o monólogo do médico, carregado de perguntas e intenções que me deram volta à cabeça e criaram sérios problemas em casa, tal a agressividade com que passei a dirigir-me à minha mãe. Passadas umas consultas, poucas, quando consegui enganar o especialista de mentes dando-lhe a falsa sensação de estabilização psicológica, este sentiu-se à-vontade para confessar que no primeiro dia em que me analisara tivera a sensação, para não dizer a certeza, que estava prestes a passar-me para o outro lado do espelho. À beira da loucura ou de um simples ataque de nervos, vá-se lá saber. Mal sabia ele como a minha loucura não tinha melhorado minimamente, bem pelo contrário, estava cada vez mais enraízada. Nós os doidos, temos uma capacidade inacreditável de levar os outros a acreditar na nossa falsa sanidade. E o pior é que conseguimos fazer com que os que nos rodeiam acreditem que, no fundo, somos porreirinhos.

Com um esforço sobrehumano consegui descolar os meus olhos daquele homem complexo. Sentia-me extenuada, até ao limite das minhas forças. Achei mais saudável tentar beber o meu café que, estranhamente, ainda fumegava à minha frente. Beberriquei aquela bebida espumosa e senti-me mais reconfortada. Tentei envolver-me nos meus próprios pensamentos, mas não consegui. A minha cabeça estava esvaziada de memórias personalizadas, como se sofresse de amnésia. Assustei-me com esta ausência de mim própria e, na esperança de encontrar uma explicação para o que se estava a passar comigo, olhei para a minha companheira de mesa, mas ela continuava a escrever desesperadamente, como se a sua vida dependesse daquelas palavras alinhadas umas a seguir às outras. A minha atenção foi, assim, transferida para o que a rapariga escrevia:

Mas onde é que eu ia …? É verdade, saimos os dois do prédio do dentista, ele abriu-me a porta da rua com um sorriso carregado de intenções; de tal forma que o seu olhar me atingiu como uma martelada. Não sei como, minha amiga, mas, num segundo fiquei com a certeza que aqueles olhos intensos se iam tornar a minha perdição. Assim, achei mais saudável fugir dali para fora, o mais depressa possível. Agradeci, como uma menina bem educada, e sai para a rua, aliás dei por mim mesmo no meio da estrada, na esperança de encontrar um taxi que me salvasse devolvendo-me à minha vidinha profissional, o mais rápido possível. Resultado, o taxi não chegou a aparecer, até porque eram 4 horas da tarde e ainda estávamos na Primavera, em pleno coração de Lisboa. Então, e visto que não tinha outro remédio, pus-me a descer a rua, com ele ao lado, afastado uns extensíssimos (se é que me entendes …?) 2 metros. O raio do tipo tinha um corpo que me dava cabo da seriedade que os meus paizinhos se tinham esforçado por me incutir.

Resumindo e concluindo, após muitos olhares trocados com a ajuda do rabinho do olho, não resisti mais e atirei-me de cabeça para o abismo; dei-lhe saída para iniciar uma conversa, obrigatoriamente superficial, já que não nos conhecíamos de lado nenhum, que acabou numa troca inocente de cartões profissionais.

No dia seguinte, ele telefonou para me convidar para almoçar. Almoçámos. E a partir daí, começámos, sem que disso nos fossemos apercebendo, a caminhar lentamente para o que se veio a transformar na desgraça total para ambos. Lanches no Ritz ao fim do dia, almoços, quase diários, viagens de trabalho partilhadas, tipo tornado, por todo o país e arredores. Até que, há cerca de um mês, a amizade que aparentemente prevalecia entre nós, e vencia todas as tentações carnais que nos iam consumindo, já não foi suficiente para encobrir o desejo físico que, em crescendo, nos vinha a dominar o dia a dia, as noites e os sonhos. Lembro-me como se estivesse a acontecer neste preciso momento. Fomos à praia, ele tremia como varas verdes e eu gaguejava como uma adolescente inexperiente. Tentávamos não olhar muito demoradamente um para o outro, com receio que o coração não aguentasse mais e explodisse dentro do peito. Até que não suportei mais o desejo que me consumia e beijei-o até quase gastar os lábios. A partir desse dia, envolvemo-nos numa relação de paixão e loucura que se revelava nos locais mais variados, nos momentos menos convenientes. Sabes amiga, isto é uma mistura de sentimentos terrenos e cósmicos, tal a paixão e intensidade que nos envolve sempre que estamos juntos.

Enfim, acho que é raro, e sobretudo é preciso um grande golpe de sorte, conseguir encontrar a pessoa que preenche totalmente a nossa vida e o nosso sentir. Aquela metade de nós próprios que por vezes passamos uma vida inteira sem encontrar. Nós os dois, a pouco e pouco, e sem que fizéssemos nenhum esforço para que tal acontecesse, tornámo-nos dois pedaços de um mesmo corpo, dois pensamentos de uma mesma memória. E em poucos dias, passámos a pertencer um ao outro de corpo e alma, sendo a morte, por um lado a única ameaça às nossas existências e comunhão partilhadas, por outro lado a única via de acesso à libertação.

Já não sabia para onde me virar, começava a ficar despedaçada por toda a intensidade que dominava a vida daquelas duas pessoas que mais pareciam saídas de um sonho surrealista. Era um sonho que ameaçava resvalar, a qualquer momento, para pesadelo.

Em abono da minha saúde mental, decidi regressar ao casalinho silencioso, convencida que o máximo que me podia despertar era alguma pena de ambos. Continuavam de mãos dadas. Surpreendeu-me a degradação galpopante que se operara na atitude daquela mulher, de ombros descaídos, parecia ter envelhecido dez anos, uns vincos arroxeados amparavam-lhe os olhos, vestígios de lágrimas recentes desenhavam linhas esbranquiçadas que desciam da cara até ao pescoço. Emagrecera assustadoramente. Observei com mais atenção o homem, tentando compreender o que acontecera para provocar uma alteração tão ostensiva na mulher. Apesar da distância que nos deparava ouvia o seu murmurar ansioso, implorava-lhe que a perdoasse. Jurava que não a voltaria a trair. E pensava:

Como raio é que me meti nesta situação deplorável, já não era a primeira vez que mijava fora do penico e, ainda por cima, desta vez nem sequer foi nada de especial, a bem dizer, não passara de um desvario momentâneo, uma tentação à qual não consegui resistir. Estes meus acessos incontroláveis de desejo por outras mulheres tinham de acabar um dia. Nem me posso justificar com a escassez sexual no meu casamento, a Susana sempre foi uma mulher fogosa. Raios, raios, raios por ser tão estúpido. Pelo menos, podia ter feito as coisas melhor, de forma a que ela não tivesse vindo a descobrir, mas não, tinha logo de levar a Clara ao restaurante que a coscuvilheira da minha secretária me sugeriu. Como pudera ser tão estúpido. Evidentemente, a estuporada que sempre me lançou uns olhares esfomeados, aproveitou imediatamente para se vingar da minha indiferença e rapidamente me lixou a vida. Teve a lata de convidar a Susana para ir jantar ao mesmo restaurante. E eu que dissera que nesse dia tinha uma reunião com a administração. Quando vi a minha mulher entrar quase que morri engasgado. O pior foi quando ela me viu. Uma cena pungente, para esquecer. Se pudesse despedia a gaja, mas ainda para piorar a minha vida não o posso fazer, visto que aquela cabra é sobrinha de um dos administradores.

Estou farto de só fazer merda na minha vida; tenho um emprego de merda que não me dá a mínima satisfação, onde a única coisa que vale a pena é o dinheiro que ganho; embora não seja muito, permite-me ter uma qualidade de vida acima da média. Não consigo engravidar a Susana, devido ao estúpido de um problema congénito que os médicos não conseguem resolver. Parece que, onde quer que toco, o resultado é sempre uma desgraça. Resumindo e concluindo, só faço estragos.

Apetece-me desaparecer. Fugir para uma ilha desconhecida, se é que isso ainda existe neste planeta. O problema é que até gosto da minha Susana, embora não resista a molhar o bico noutros docinhos. Homem que se diz homem não pode ser indiferente a tantas mulheres boas que circulam, provocantes, pelas ruas desta cidade. Mas, como é que se convence uma mulher que a podemos amar e ir brincando com outras pelo caminho, sem que os sentimentos sejam alterados. As mulheres que aceitam essa condicionante masculina, aproveitam-se logo para reinvindicar os mesmos direitos. Aliás, nessas ocasiões até parece que só estavam à espera de uma boa desculpa para se sentirem justificadas nos seus desvarios futuros.

Fechei os olhos numa tentativa de acabar com aquela capacidade inédita de ler os pensamentos alheios e sobretudo os que derivavam da mente daquele homem. Havia limites para a estupidez machista e ele não os estava a cumprir. Virei-me, esperançosa, para as três alegres velhinhas que partilhavam uma das mesinhas artísticas daquele Salão; essas, pelo menos, pareciam estar a divertir-se bastante com as recordações que iam partilhando. Olhando para elas, aparentemente tão alegres e despreocupadas, dei por mim a desejar ter uma velhice semelhante, bem-disposta e repleta de recordações felizes para partilhar com os amigos e, quem sabe, com os filhos e os netos.

Sem que chegasse a compreender porquê, dei por mim a imaginar o que seria uma velhice amarga, zangada comigo própria e com os outros, desiludida por ter deixado tanta coisa por fazer e confesso que fiquei aterrorizada. Só esperava poder vir a ser uma velha consideravelmente satisfeita com o meu passado, rodeada de netos ranhosos. Queria só chegar à velhice depois de ter vivido o melhor e mais intensamente possível, de forma a ter um monte de recordações guardadas no gigante baú da memória que me entretivesse a mim e aos meus.

A minha disertação sobre os problemas da idade, foram interrompidas por uma voz que chamava suavemente:

- Menina , minha menina !

Tive mesmo de abandonar os meus pensamentos futuristas. Quando olhei, com olhos de ver, para identificar quem é que falara, reparei que uma das três velhotas, por sinal a mais elegante das três, chamava com uma voz rouca e um aceno delicado. Demorei, ainda, mais alguns segundos a compreender que era a mim que se dirigia.

- Sim, a menina. Será que se importava de chegar aqui, por favor!

Ainda hesitante, levantei-me e dirigi-me para a mesa daquelas três mulheres já consideravelmente entradas na vida. Quando as alcançei começaram as três a falar ao mesmo tempo; pareciam umas miúdas. Não consegui perceber o que diziam, penso que no meio de algumas frases mais animadas e agressivas, dirigidas umas às outras, tentavam apresentar-se.

- Caluda, meninas ! – disse a que parecia ser a mais velha e que, há momentos, me chamara.

– Eu sou a Beatriz, esta aqui, a mais gorducha é a Violante e aquela escazelada, com cara de poucos amigos, é a Joaquina. Estávamos aqui a falar das nossas vidas, quando veio à baila uma questão deveras aborrecida que acabou por causar alguns estragos na nossa amizade. Temo que os estragos causados sejam difíceis de reparar, nem que seja por falta de tempo nesta vida. O que é uma pena e um desperdício. Somos amigas desde sempre e não era suposto zangarmo-nos “nesta altura do campeonato”.

- Compreendo! – disse eu, sem na realidade entender nada do que se estava a passar naquela mesa. Ainda há bem poucos momentos, aquelas três mulheres tinham parecido ser as únicas pessoas presentes naquele Salão com uma atitude minimamente positiva e alegre.

Beatriz continuou:
- Isto é um assunto extremamente delicado, mas cheguei à conclusão que necessitamos de alguém externo a esta questão que nos dê uma opinião. Uma pessoa imparcial e, sobretudo, diferente … .

- Diferente ?! – espantei-me eu que me considerava a pessoa mais corriqueira desta vida.

- Sim, sim, isso mesmo. Mas vamos ao que importa. Aqui a nossa querida Joaquina descobriu hoje, através de um deslize meu, confesso, que o marido, já morto e enterrado há mais de dez anos, teve um breve “affaire” com a nossa amiga Violante. Estou certa que foi uma coisa sem importância, mas a verdade é que para quem está de fora, sem emoções envolvidas, é sempre tudo muito mais simples. Agora, em relação aos sentimentos da Joaquina, as coisas já não são assim tão lineares e indiferentes. Ela está muito magoada e com instintos demasiado agressivos para com a Violante. Se não a acalmarmos, isto ainda vai dar para o torto.

Nem queria acreditar no que estava a ouvir, esfreguei os olhos na esperança de esclarecer o que estava a acontecer à minha frente, naquele preciso momento. Alguma coisa estava mal comigo; se calhar, o café que bebera estava estragado ou envenenado ou, então, o mundo que teimava em rodear-me desde que entrara naquele Salão de gente estranhamente familiar e semi-maluca tinha, de repente, sido virado de pernas para o ar, sem que ninguém tivesse tido a preocupação de me avisar.

Olhei à minha volta à procura de uma referência qualquer que me salvasse daquela estranha situação, mas ninguém parecia sequer interessada no que se estava a passar naquele ponto do Salão. Estavam todos concentrados nos seus próprios problemas. Só me faltava mais esta. Não pude alongar-me mais nos meus pensamentos porque uma voz esganiçada fez-se ouvir:

- Já disse à Joaquina que isso aconteceu muito antes de eles se casarem, numa altura em que até estavam zangados. – defendeu-se, sem grande esperteza, deva-se dizer, a já afamada Violante. – Além disso, o António passou o tempo todo que estivemos juntos a falar de ti. Estava sempre com tantos problemas de consciência que até aborrecia. Como vês, tudo não passou de um conjunto de incidentes, no mínimo enfadonho, para não dizer desagradável.

- Devias ter vergonha na cara ou, no mínimo alguma massa encefálica nesse cérebro de borboleta. No fundo, nem sei porque me preocupo contigo, sempre foste uma estouvada. Se ainda tivésse forças arrancava-te os poucos cabelos pintados que ainda te restam nessa cabeça de perua. Pensava que eras minha amiga, mas, afinal, não passas de uma falsa, aliás, como a maioria das pessoas que se cruzaram comigo ao longo de toda a minha vida! – exaltou-se a Joaquina, sem, no entanto, chegar a elevar a sua voz profunda e dura, mas batendo violentamente com a sua bengala no chão de madeira.

Mal tive tempo de me surpreender com o facto do suposto baque da ponta da sua bengala naquele chão lustroso ter sido inaudível, como se não chegasse a ter existido. Logo as três reiniciaram uma discussão. Não conseguia atingir porque diabo me tinham elas chamado. Só sei que, sem disso ter plena consciência, saiu-me a seguinte tirada, brilhante deva-se dizer:

- A traição é a pior das torturas que podemos infligir a uma pessoa que nos ama. Tem o condão de destruir tudo o que a rodeia, irremediavelmente.

Calaram-se as três instantaneamente e viraram o olhar espantado para mim. Foi assim que tive a nítida certeza que mais valia ter ficado calada. Agora é que, com certeza, estragara tudo de vez, pensei eu com os meus botões. Depois de se refazerem da surpresa causada pela minha tirada, olharam-me as três, cada uma com uma expressão particular. A charmosa e inteligente Beatriz, responsável por toda aquela confusão, com um sorriso ostensivamente matreiro, abraçou-me com um olhar azul, profundo e com um ligeiro aceno, fazendo-me, assim, saber que me limitara a dar voz aos seus próprios pensamentos. A bela Violante, com os olhos curiosamente juvenis e inocentes de quem não consegue atingir a profundidade das coisas mais simples da vida, inclinou a sua cabeçinha prateada, deixando-a tombar sobre o seu ombro direito, fez um beicinho capaz de derreter qualquer coração empedernido e encolhendo os ombros rematou de uma forma brilhante:

- É um exagero chamar-se traição a um devaneio amoroso, para não dizer meramente sexual, que se passou há cerca de meio de século. Digamos que foi um erro de percurso, uma desorientação pontual, sem qualquer significado, da qual me arrependi rapidamente. – De seguida virou-se para a amiga. – Vá lá, Quina, perdoa-me, eu sei que fui indecente, mas compreende que tudo aconteceu numa altura em que estavas hesitante sobre o que sentias pelo António, até nos dizias que o achavas desinteressante e tosco. Chegámos a pensar que não ias ter paciência para o aturar no teu radioso futuro. No meu caso, sempre o achei especial, além de que era um borracho, confesso. No caso dela, sei que se sentia inseguro e carente. E eu limitava-me a estar ali à mão, toda a gente sabia que eu era louca e não apreciava compromissos duradoiros … .

Já bem arrependida das minhas palavras imponderadas (teriam sido mesmo minhas?), encarei, ansiosa, a irritada Joaquina, na esperança de ver um sinal de perdão, mas os seus olhos escuros pareciam dois abismos negros, sem saída, e, nessa altura, soube que ela estava perdida no seu abismo particular de amargura e tristeza sem fim, há já demasiado tempo. Impressionou-me a sensação de impotência que me atingiu como uma estalada, ao compreender que aquela mulher, outrora seguramente tão interessante, não tinha outra saída que não o outro lado do mundo, o mundo dos sonhos, onde tudo é possível, onde tudo é permitido, até ser feliz.

Não aguentava mais aquela loucura, sentia-me cada vez mais enredada num labirinto irreal de palavras. Olhei à minha volta, todas aquelas personagens originais, com quem me cruzara, continuavam nas suas vidas, nas suas paixões, amores e desamores. Tapei os ouvidos para não ouvir mais os pensamentos que me atingiam como gritos e fechei os olhos convencida que tudo não passava de um pesadelo. Queria acreditar que quando os abrisse de novo estaria na minha aula de História de Arte a divagar, anestesiada pela voz monocórdica do professor. Se bem que com algum receio da realidade que me ia surgir à frente do nariz, reuni coragem para tornar a abrir os olhos. Quase me descontrolei e desatei a gritar quando cheguei à triste conclusão de que tudo estava na mesma. Ali permanecia eu, parada no meio do Salão, meio anestesiada pela música e pelos aromas exóticos que cobriam o ar. Sem ninguém dar por mim. Sem conseguir mover-me um milímetro.

Não sei quanto tempo perdi naquela letargia semi-inconsciente. Sentia-me a pairar sobre mim própria, observando-me das alturas, ridiculamente imóvel, no meio de um Salão onde nada era o que parecia e, onde, ao mesmo tempo, tudo tinha um significado, se bem que indecifrável.

Fui acordada por uma lufada de vento gelado, como se uma janela se tivesse aberto nas minhas costas. Só que não havia janela em lado nenhum. A única via de acesso àquela sala peculiar era a minúscula porta por onde entrara.

Com alguma dificuldade em situar-me, procurei-a e reparei que estava aberta, como que a convidar-me para sair. Achei que era mais saudável aceitar o convite tentador de fugir e lancei-me com toda a convicção que me foi possível arranjar.

Transpus a pequena porta, sem olhar para trás, com receio de me sentir tentada a ficar por ali, até perceber o que raio me tinha acontecido, e fui devolvida à realidade e ao presente da minha vidinha mundana. Saí para a rua. Caía uma morrinha incómoda que me provocou um violento arrepio ao longo das costas. Olhei para o relógio que tinha no pulso, na tentativa de me definir no tempo, convencida que já se teriam passado horas desde que decidira tomar uma bica naquele Café de loucos. Tentei manter a pouca sanidade mental que ainda me restava quando constatei que se corresse ainda chegava à minha aula de História de Arte a tempo de apanhar algumas dicas.






























SEGUNDO DIA


Dormi mal.

Chafurdei toda a noite num sonho em que andava perdida pelas ruas de uma cidade fantasma cujos prédios se assemelhavam a caras que me seguiam, as janelas eram olhos insistentes que me fixavam e as portas de entrada, bocas escancaradas que tanto pareciam querer engolir-me como vomitavam os mais estranhos impropérios. Pior do que este pesadelo, só me vem à memória a cena final da história do Capuchinho Vermelho, quando o lobo, disfarçado de avozinha adoentada, acaba por abrir a sua bocarra assustadora e engolir, impiedosamente, a menina que dá o nome à história.

Demorei algum tempo a afastar as sombras deste pesadelo, ainda a pairar sobre mim, mas, por fim, lá consegui entreabrir os olhos, levantar-me da cama, a custo, e arrastar-me heroicamente para a casa de banho. Milagre!. Estava desocupada. Entrei. Os meus esforços para abrir bem os olhos e assustar-me com a fotocópia de mim própria, que o espelho se preparava para me retribuir, sairam furados, pelo que tive de me enfiar debaixo da água morna do duche, na esperança de matar a dor de cabeça que me corroía o cérebro. Não me lembrava de ter apanhado uma piela na véspera, mas a sensação era idêntica à de uma tremenda ressaca, só faltava a boca a saber a papel de música.

Depois do banho reparador, voltei para a minha toca. Vesti-me, preguiçosamente, como se fosse domingo. Por acaso, olhei pela janela do quarto, à espera de dar com a mesma chuvinha do dia anterior a bater na calçada, mas afinal estava um Sol brilhante e um céu promissor. Consultei o rádio-despertador da minha mesa de cabeceira, super confiante, mas quando fui capaz de decifrar a informação nele indicada dei um pulo. Já estava outra vez atrasada para as aulas da Faculdade. Bolas!.

Vesti o primeiro casaco que me apareceu à frente e saí a correr pela escada abaixo. Tropecei no embirrante gato do vizinho do 1º andar e, finalmente, alcancei a rua, acompanhada pelos meus próprios palavrões. Desatei a correr, feita louca, e enfiei-me no metro para a Cidade Universitária. Durante o longo percurso, tentei interessar-me pelos meus companheiros de viagem e pelas pessoas que entravam e saiam da minha carruagem, já que eram bastante variadas e coloridas. Vã tentativa, o meu pensamento, agora já bem desperto, resvalava teimosamente para os acontecimentos da véspera e a vontade de voltar ao Café estava a tornar-se incontrolável. Em desespero de causa, abri o caderno de apontamentos referentes à matéria sobre o Classicismo, meu período preferido, e esforçei-me por relembrar o trabalho que naquele dia tinha de apresentar na aula, frente a umas 30 pessoas, mas, embora os meus olhos seguissem fielmente as linhas escritas, as palavras bailavam à minha frente, fazendo ricochete em mim própria, sem conseguirem penetrar na minha mente. Desisti. A curiosidade era demasiado intensa e o desejo de ir mais longe naquela experiência surreal, impossível de conter. Mesmo assim, ainda consegui sair do metro na estação certa e empurrar-me até à escadaria da Faculdade. Foi então que senti as minhas pernas trairem-me, ao iniciarem uma caminhada em sentido contrário ao que seria de desejar, e o meu corpo ser puxado para um destino que não era difícil de advinhar.

Só voltei a ter plena consciência de mim própria e controlo do meu corpo quando já estava na boca da rua onde o tal Café vivia. De onde me encontrava podia observar bem a entrada e o movimento da rua que, a bem dizer, era nulo. Decidi esperar uns momentos, antes de me lançar para mais uma saga desconhecida e na esperança de ver, nem que fosse uma só pessoa, entrar ou sair. Alguém que pudesse identificar-se como uma espécie de companheiro do infortúnio. Não sei bem quanto tempo ali espere,i de pé, a realidade é que, além de mim, só a minha sombra é que me fazia companhia, embora silenciosa, e animava, com algum movimento, aquele espaço.

Caminhei devagar, refreando a vontade que tinha de desatar a correr para chegar mais depressa ao meu inevitável destino. Cheguei à porta do Café. Entrei. Tudo aparentava estar no mesmo sítio, nem as teias de aranha pareciam ter aumentado desde o dia anterior. Acerquei-me da portinha misteriosa, sempre de ouvido atento. Respirei fundo e entrei, na expectativa do que, desta vez, se iria materializar à minha frente.

Logo à entrada, fui atingida por um clarão de luz que me obrigou a fechar os olhos e a piscá-los, ainda durante algum tempo, antes de os conseguir manter abertos mais do que breves segundos. Quando, por fim, me senti minimamente capaz, olhei em volta, a fim de registar as prováveis alterações de pessoas e ambiente que, pensava, teriam, obviamente, tido lugar, desde o dia anterior. Pelo menos, valia-me o facto daquela luz brutal ser uma novidade. Devia estar a ser criada artificialmente, visto que continuava sem haver uma única via de acesso ao exterior solarengo. Procurei a origem da luz, já de olhos bem abertos, não fosse ela escapar ao meu entendimento, e, de repente, compreendi a sua importância; era essa luz que iluminava descaradamente um homem que se encontrava sentado à frente de um reluzente piano de cauda preto. Apesar de só o estar a ver de costas, e sentado, adivinhei a elegância daquele homem, a beleza das suas mãos que tiravam alguns acordes suaves do piano, sem que aparentemente conseguisse decidir-se que música tocar. Quase simultaneamente a estes meus pensamentos íntimos, as suas mãos pararam e toda a sua atitude corporal se crispou de tensão. Dir-se-ia que o meu olhar o incomodara ou que, vá-se lá saber de que forma, se apecebera da minha entrada em cena. Lá estava eu a divagar e a imaginar coisas onde elas não existiam. Bem, a verdade é que, logo que desviei o meu olhar para, pela primeira vez naquele segundo dia, procurar os rostos das desgraças e das alegrias já minhas conhecidas, os acordes ou, talvez a afinação do piano recomeçaram.

Sem saber porquê, respirei de alívio.

A minha mesa e o meu lugar, à frente da rapariga de cabelos pesados, estavam intactos. Ela lá estava a escrever, furiosamente, aparentando, desta vez, consternação, mais do que angústia e solidão. Sentei-me, ou melhor, deixei-me cair na cadeira, fechei os olhos e, utilizando a técnica dos desenhos animados, belisquei-me, ainda na esperança de acordar na minha inofensiva cama, enrolada nos meus adorados lençóis de flanela. Nada disso aconteceu, como aliás já era de prever. Limitei-me a ficar com a dor aguda do beliscão e a certeza de uma nódoa negra para o dia seguinte. Na verdade, o que aconteceu foi o meu extraordinário cérebro reiniciar a sua capacidade incompreensível de ler os pensamentos e apreender os sentimentos das pessoas circundantes. Foi neste contexto que voltei a entrar, à descarada, dentro da vida da minha companheira de mesa:

Querida Amiga,

Recebi a tua carta e fiquei aflita. Que raio de conversa é essa de andares sem fome e teres praticamente deixado de comer. És parva? . Logo tu que sempre foste uma gulosa de primeira. Não ligues ao Fabrice, ele que se lixe mais essas porras da gordura e da celulite. Tu nunca foste gorda, bem pelo contrário, a tua elegância sempre foi motivo de inveja para o mulherio que te rodeava. Só na altura em que andáste com o Vitor, lembras-te, quando apareceu a moda dos croissants acabadinhos de fazer, repletos de doce de ovos.. . Nesse ano sim, ambas engordámos uns quilitos, mas éramos felizes à brava, loucas mesmo. E os nossos namorados gostavam de nós, tal como nós éramos. Bolas, às vezes quase morro de saudades dessa altura, daquelas festas loucas em casa do André e as bebedeiras muito bem curtidas, mas mal curadas na praia, ao luar e ao sabor das ondas.

Não te deixes afundar, minha amiga, não permitas que te destruam com comentários idiotas. Não te podes esquecer que sempre foste a mais coerente das duas, e a mais forte, se tu te vais abaixo, o que é que faço de mim própria?. Além de que, se não parares com essa parvoíce, vou aí buscar-te pelas orelhas.

Esse raio dessa mania da beleza estar na magreza parece ser o último grito da moda. Os estúpidos dos homens parecem gostar de ter mulheres em casa esqueléticas, tipo múmias, já que não podem ter uma Cláudia Schiffer, mas só para apresentar aos amigos e aos colegas de trabalho, para que os invejem através da elegância forçada das suas esposas. Para outro tipo de actividades sentem a falta dos acessórios carnudos que nos caracterizam.

Pronto, pronto, já sabia que ias ficar a arder de curiosidade sobre este meu tórrido romance, o mais recente, quero eu dizer. Tinha ficado onde? … . Isto foi só para despistar!!. . É verdade, fiquei no dia fulminante da praia; na altura em que desesperei pelo facto de ele não se decidir e me atirei de cabeça, etc… .

Em relação aos nossos encontros, a partir desse dia, não me posso alongar muito mais, pois arriscava-me a transformar esta carta num folhetim erótico, tipo o folhetim radiofónico Simplesmente Maria, mas, neste meu caso, com carradas de molho picante à mistura. Além disso, o sofrimento provocado por tamanha paixão tem sido muito superior à felicidade que é suposto o amor proporcionar. Pelo menos, a acreditar nos filmes americanos e nos seus eternos finais felizes. Isto tem sido tão violento e desgastante que já maldigo o estupor do dentista, não só pela sua característica de carniceiro, mas, principalmente, por existir à face da terra. Maldita a hora em que me deu aquela dor de dentes que, no final, acabou por degenerar em dor de alma. Assim, e já que não deves estar a perceber nada do que estou para aqui a dizer, aqui vai o resumo da miséria que me tem acompanhado nestas últimos semanas.

Posso abreviar o assunto, contando-te que a semana passada tive a infeliz confirmação de uma dúvida que, de algum modo, já se vinha a instalar na minha cabeça há uns tempos. O garanhão é casado e, como não podia deixar de ser, tem filhos. Agora que já passaram alguns dias e que já recuperei minimamente a compostura, posso-te relatar a minha estúpida reacção. Depois de falar com ele e de lhe dar umas murraças na tromba (insuficientes), fui calmamente para casa e despejei pela goela abaixo todos os anti-depressivos que tinha no meu cesto de medicamentos. Salvou-me o João Paulo que, por acaso, passou lá por casa e, ao ver-me completamente lunática e a querer enfiar a Flausina (lembras-te, a minha gata) no forno, achou que alguma coisa não estava a bater certo no meu discurso e lá acabou por me levar para o hospital. Aí tive oportunidade de me arrepender de todos os meus pecados e de todas as fraquezas da minha carne, durante o moroso processo, degradante, da lavagem ao estômago e das bocas consideravelmente desagradáveis a que tive de me sujeitar.

Mas aqui estou eu, após uma palestra entediante, proferida por um psicólogo ensonado e completamente indiferente em relação às minhas dores de alma (ou de corno). Resultado, nem ele, nem eu conseguimos dar cabo da minha depressão. E, daí, continuar irritantemente viva. Pelo menos, por fora, com alguma carne a adornar a pele e os ossinhos todos eles salientes, mas no seu devido lugar.

De repente, fui invadida por um turbilhão de pensamentos que apesar de não me serem devidos, já me começavam a ser familiares e por uma miscelânia de sentimentos e palavras que abafaram aquela sala como um véu e me impossibilitaram de seguir a vida da minha companheira da frente. Uma onda de calor acertou-me, em cheio, na cara, obrigando-me a levar as mãos às bochechas, em jeito de protecção. Sentia-me corar, sem motivo aparente. Fiquei momentaneamente sem saber se o responsável por aquele calor era um estranho agente exterior ou se limitava a ser fruto de uma qualquer estranha reacção interna do meu corpo, se bem que alheia à minha vontade. Olhei em volta, muito incomodada, e reparei que o pianista desistira das suas afinações harmoniosas e iniciara uma música que me era, mais uma vez, familiar, embora não a conseguisse, de todo, identificar.

Observei-o com mais atenção. Do local onde me encontrava sentada conseguia apanhar o seu perfil, que mais parecia esculpido numa pedra esbranquiçada. Tinha uma cara séria e dura. Cabelo claro cortado à militar ou, melhor dizendo, rapado à moda, nariz bem delineado, lábios finos, arrumados num vestígio de sorriso trocista e um queixo provocante, escanhoado na perfeição. Apreciei, também, os ombros largos e toda a sua constituição atlética, mas quando cheguei às mãos tive de me render ao seu encanto, eram especialmente bem desenhadas, base forte, mas dedos compridos e esguios, não havia dúvida que eram mãos especiais. E o melhor de tudo, não tinha aliança visível, nem qualquer outro tipo de anel.

A presença daquele homem passara a ser, naquele preciso momento, o ponto mais forte da sala, pelo menos para mim. Nele pareciam convergir todo o tipo de vibrações. Positivas ou negativas não conseguia decifrar, só sei que eram tremendamente fortes e sugestivas. Pela primeira vez na minha vida, tive a sensação de estar perante a maldade pura; a demência de um cérebro ardiloso. Aquele homem assustava-me, e, talvez por isso, não conseguia arredar os olhos da sua figura. Todos os outros sons, que me tinham envolvido e amparado até àquele momento, se apagaram da minha percepção para, no seu lugar, se instalar aquela melodia perfurante. Fazia-me lembrar vagamente uma história para crianças, em que um tocador de flauta consegue atrair todos os meninos de uma aldeia, hipnotizando-os com os sons maravilhos que vai extraindo do seu instrumento musical.

O cheiro estonteante da sua água de colónia chegou até mim, tal a intensidade da estranha ligação que se estabelecera entre mim e ele. Aquele odor era-me doloroso, pois, evocava recordações, pouco claras, de alguém que fora essencial no meu passado, mas de quem, naquele preciso instante, não conseguia sequer visualizar a cara. O perfume do pianista penetrou-me até ao recanto mais profundo da minha alma e ali se instalou, sem arredar pé, embora eu tentasse, desesperadamente, abanar a cabeça para o expulsar e me libertar da sua envolvência.

Sem parar de roçar os seus longos dedos pelas teclas do piano, ele rodou, muito ligeiramente, a cabeça e lançou-me o olhar mais convidativo e lascivo de que já alguma vez tinha sido vítima. Esboçou uma espécie de sorriso, através de um imperceptível repuxar do lado direito dos lábios, e instalou-se descaradamente na minha cabeça, como uma inesperada e indesejada bebedeira, resultante de uma qualquer bebida marada.

Os seus pensamentos eram tão desagradáveis que, sem dúvida, só podiam ser fruto de uma mente sórdida e desaustinada ou, então, derivavam de algum distúrbio mental. Mas o mais preocupante, era que se dirigiam à minha pessoa:

Aquela ali é o que eu chamo, um pedaço de mulher atraente. Boazona a gaja, embora com um pouco de rabo a mais para o meu gosto. Por outro lado, e pensando melhor, um bom traseiro pode revelar-se um bom instrumento de auxílio para um trabalhinho bem feito. Pelo menos, ela é a única coisinha que se aproveita hoje neste raio de sítio esquisito. Sempre gostava de saber o que passou pela cabeça do Armando para me levar a aceitar este trabalho. Acho que vou ter de pensar em mudar de agente.

No meio desta degradação toda, salva-me aquela tipa. Vou ter de a comer. Vai ser canja. Tem ar de cama, tal como eu gosto numa mulher, um ligeiro embaraço no olhar, mas sequiosa de sexo. E eu nisso não sou nenhum unhas de fome. Vou-lhe lançar o meu olhar de artista incompreendido, normalmente elas gostam desse tipo de homem, pedinte e sequioso de compreensão e carinho. Adoram pensar que são as únicas capazes de compreender e ajudar um homem solitário.

Tive de fazer um esforço e segurar o queixo para este não me cair em cima da mesa. Nem queria acreditar que estava a ouvir os pensamentos sórdidos daquele gajo. Pela primeira vez senti-me aliviada por ter a capacidade de ler os pensamentos de alguém, desta forma, não corria o risco de me sentir tentada por aquele estafermo. Mesmo assim, sentia-me escandalizada com tanta lata.

Olhei à minha volta num pedido de solidariedade, como se todos os presentes tivessem acabado de ouvir aquelas ponderações ofensivas e devessem, por isso, vaiar o seu interlocutor. Mas ninguém sequer reparara em mim, quanto mais, no pretensioso pianista que mais parecia um invasor daquele espaço intemporal. Nós os dois parecíamos não existir, pura e simplesmente, para aquela gente, como seres humanos válidos e reais. Só que no meu caso, entrara ali, como quem não quer a coisa, para beber o cafezinho da ordem, ao passo que aquele homem devia ter sido convidado por alguém, já que trouxera todos os seus tarecos para actuar.

Apressadamente, procurei refúgio visual no olhar do meu companheiro careca. O homenzinho que, no dia anterior, chegara a chocar-me com a sua história pouco comum, actualmente, e comparado com este tipo, mais se parecia com um menino de coro.

Ele, por sua vez, olhou para mim e com um suspiro que mais parecia um gemido saído do fundo da sua alma, prosseguiu a sua triste saga, como se estivesse a contar uma história para um público desatento. Desesperado por chamar a atenção de todos para o seu sentir e ansioso por ouvir alguma opinião ou sugestão que o ajudasse a sair do buraco em que se sentia metido:

O Henrique telefonou-me ontem, após um longo e doloroso mês de silêncio. Quer encontrar-se comigo. Suprema felicidade, embora saiba que, depois de estar com ele, me vou sentir, pela enésima vez, um farrapo, desprovido de qualquer amor-próprio. Mas a carne é fraca e a realidade é que aquele tipo me dá volta à cabeça, e não só. Já sei que vou tremer durante todos os segundos que estiver sentado à sua frente, numa qualquer mesa de restaurante. Desta vez, vou tentar, com mais veemência, esconder, por detrás de palavras duras e incisivas, a frustração e os sentimentos avassaladores que me irão na alma. Falarei o mais fria e distantemente que me for possível, enquanto ele se mantiver afastado de mim, enquanto ele não me tocar E, no final, também já sei que vou fraquejar, as minhas pernas vão dar de si e o calor vai ser sufocante, ao ponto de sentir o coração a explodir dentro de um peito pequeno demais para o albergar. Vai bastar ele tocar-me com um dedo ou fixar-me com o seu olhar húmido e infeliz, para logo eu resvalar para os seus braços fortes envolventes. E lá irei eu, sempre em queda livre, até ao derradeiro segundo em que estivermos juntos, isto é, até ele achar que está na hora de me despachar para poder descansar.

Há alturas em que desejo morrer para não ter de lidar, nunca mais, com a frustração dos dias que seguem estas escassas noites de paixão e, atrevo-me a dizer, de amor. A inevitável tristeza e a má-consciência tornam-se, a maioria das vezes, insustentáveis. Fico prostrado, sentindo-me o ser humano mais miserável do mundo, por só poder ter este homem por breves momentos, após tantos dias, e às vezes semanas, de separação. Nessas alturas mais negras, juro a mim próprio que vou acabar com esta não-relação e começar a pensar em mim, numa nova vida. Chego mesmo a conseguir concretizar parte dos meus intentos, quando tenho a sorte de conhecer pessoas bem mais interessantes do que ele. Mas, passados uns dias, entro em pânico ao pensar que ele está com outro, que outro lhe toca, que nunca mais o vou ter colado a mim e resvalo. E ele lá permanece, constante e intocável, no seu mundo, à espera de uma felicidade para a qual não tem, nem tempo, nem espaço. E aceita –me sempre de volta, sem perguntas nem curiosidades, sem nunca sequer ter sentido a minha ausência, já que esta nem chegou bem a existir.

O que raio é que ele quererá de mim desta vez?. O facto inédito de me procurar, em vez de me alegrar, assusta-me. Não creio que seja nada de bom. Dele nunca veio nada de positivo, só desespero e cobardia. É triste amarmos uma pessoa pela qual não nutrimos mais do que uma ânsia sexual e uma frustração por não a conseguirmos cativar.

A história da vida amorosa deste homem, apesar de ser uma história bastante incómoda, tinha o condão de me fascinar. Gostaria de poder conversar com ele, para tentar compreender como se apaixonara por uma pessoa pela qual não demonstrava ter sentimentos lá muito sãos, apenas obsessões, no entanto, sabia que esse tipo de contacto me estava vedado naquele espaço, naquele tempo, não me perguntem porquê. Talvez por nem ele, nem ninguém no Salão, ter a noção que os seus pensamentos, tão íntimos, estavam frequentemente a ser usurpados pela minha pessoa, sem que eu nada pudesse fazer para o evitar. Sentia-me uma abusadora em relação a todas estas pessoas, na vida das quais entrava e saía à socapa, sem pedir licença. Ouvia-as, sem que falassem verdadeiramente comigo; lia-lhes os pensamentos e as palavras, sem que estes me fossem especificamente dirigidos; ia-as conhecendo, sem poder retribuir com nada de mim própria, até porque, aparentemente, mal davam pela minha presença.

No Salão, o tempo não parecia ter nenhum significado ou importância, ali não se sentia a existência nem do passado (cadenciado, tal como eu o conhecia e aceitava, por dias, semanas, meses, anos etc…), nem do futuro (misterioso e insondável), e o presente aparentava ser, pura e simplesmente, um estado de espírito consideravelmente personalizado.

Estava eu nesta minhas profundas cogitações, quando um discreto tossicar me obrigou a interrompê-las e a descer, aos trambolhões, à terra. Um dos aprumados criados de mesa estava de pé, à minha frente, com uma bandeja, impecavelmente areada, na mão esquerda. Surpreendida, apercebi-me que transportava na sua bandeja um copo solitário contendo um líquido transparente, três pedrinhas de gelo e uma rodela de limão que mal se equilibrava na borda. Olhei para ele, em jeito de quem pede explicações, mas só consegui um muitíssimo ligeiro soerguer de sobrancelhas e um décimo de sorriso, enquanto me entregava um papelinho amarelado, juntamente com a bebida, onde estava rabiscada a seguinte mensagem:

Saio daqui a uma hora, que tal irmos beber mais um copo???

Olhei automaticamente para o pianista. Ele continuou a tocar, sem se interromper ou hesitar. Sorriu com o sorriso estudado de quem tem todas as certezas do mundo. E eu senti-me completamente parva, e pior ainda, quando um sorriso me traíu a mim própria.

O pior de tudo era também conseguir compreender os seus pensamentos desagradáveis:

Se te armas em esquisita, minha filha, bem podes ir pentear macacos. Acho melhor que penses bem, estou a dar-te uma oportunidade de teres uma noite inesquecível.

Fiquei furiosa com a sobranceira daquele gajo. Filho da mãe!. E eu, grande estúpida, a primeira coisa que fiz quando recebi o bilhete foi olhar embevecida para ele. Peguei no copo que me enviara, através do criado de mesa, e dei um golo, confiante de que limparia, de vez, a minha imagem, ao fazer uma careta de desagrado quando provasse a bebida escolhida por aquele pianista convencido e chegasse à conclusão, que só podia ser óbvia, de que não gostava. Fiquei estarrecidai, e quase que me engasguei, ao verificar que o que estava a beber era, nem mais nem menos, a única bebida que consumia com regularidade e, por vezes, até com algum exagero. Vodka Tónico. Cometi o meu segundo erro do dia, ao olhar novamente para ele, deixando-o aperceber-se da minha admiração. Desta vez, o seu sorriso foi bastante mais evidente e até se deu ao luxo de olhar directamente para os meus olhos, sem qualquer embaraço. O olhar penetrante e seguro de quem já tinha a noite ganha.

Só me apetecia arrancar os cabelos e espezinhá-los, por permitir que aquele pianista de meia tigela dispusesse, assim, da minha pessoa. Como vingança, aguentei os seus olhos e, com o que eu tinha esperança ser um gesto de indiferença, virei-me para o outro lado e forçei a minha mente por se interessar pelo que se estava a passar no canto oposto da sala.

Na mesa mais recôndita do Salão, lá estava o casalinho silencioso que no dia anterior comunicava por toques discretos trocados entre as suas mãos e olhares cruzados ou desviados. Desta vez, mantinham as mãos afastadas, as dele sobre a mesa, tremiam ligeiramente, dando expressão ao olhar ansioso, preso à sua mulher. Ela, curiosamente calma e descontraída, segurava um pequenino espelho com a mão direita e, com a esquerda, retocava a pintura escaldante dos lábios. Cortara o cabelo bem curto, à rapaz e vestia-se com roupa discreta, talvez um pouco masculinizada. Surpreendeu-me a modificação que se operara naquela mulher, desde o dia anterior. Mesmo a sua forma de vestir alterara-se 180 graus. Para melhor, deva-se dizer. Por seu lado, ele seguia atentamente todos os movimentos da mulher, ansioso e suspenso num qualquer olhar dela que tardava em chegar ou num gesto que nunca chegaria a ser esboçado.

As mudanças daquelas duas personagens em menos de 24 horas, eram surpreendentes, para não dizer inacreditáveis. Quem, no dia anterior, se tinha revelado como a figura dominante do casal, passara para a figura dominada e vice-versa. Era difícil de acreditar que só tivesse passado um dia. Não sabia que era possível um ser humano mudar,, tão radicalmente de um dia para o outro, pelo menos no mundo real em que eu queria acreditar que ainda vivia.

Com um ar de gatinho abandonado, ouvi-o falar, isto é, murmurar entredentes:

Acho que a Susana deixou de se interessar por mim. Dou voltas e mais voltas à minha cabeça e continuo sem conseguir digerir lá muito bem a história da amiga que ficou a dormir lá em casa, por ter medo de conduzir à noite. Sobretudo, que raio estava ela a fazer no meu lado da cama. Não estava assim tanto frio que ela não pudesse ter dormido no chão, no colchão de campismo dos meus sobrinhos.

Se ao deitar-me às escuras tivesse dado de caras com um homem, não haveria margem para dúvidas, mas com uma mulher é coisa que não me entra. Pelo menos, quando aqui há um bom par de anos prevariquei tive o viril bom-senso de o fazer com outra mulher, isto da minha mulher me trair com outra mulher parece abonar, ainda menos, a meu favor.

Pensando bem, a amiguinha não era má de todo. A minha Susana tem bom gosto, se calhar até é coisa para ponderar com descontracção e encarar a possibilidade de passarmos a dormir, de vez em quando, mais apertados. Há que levar as coisas pela positiva, a verdade é que a Susana, apesar da sua fogosidade e por muito que se esforce, nunca foi lá grande espingarda na cama e se a outra for como ela, sempre são duas a mexerem-se pouco, mas a dobrar. Isto se a tonta da minha mulher não se tiver desinteressado completamente por homens e, particularmente, por mim.

Ela, por seu lado, com a sua imagem reflectida no espelho, sonhava acordada:

Nunca pensei vir a interessar-me por outro homem que não o Ricardo. Sempre me ensinaram que o casamento é para toda a vida e que devemos amar e honrar o nosso marido até que a morte nos separe. Esqueceram-se foi de me dizer que ia ter de aceitar os desvarios do meu homem quando lhe subissem as vontades e fosse dormir com outras. O Ricardo foi o primeiro e único homem da minha vida, por isso pensava que ele era o supra sumo da natureza, nunca imaginei sequer que podia suscitar interesse noutro homem. Parece que andei de palas nos olhos durante todos estes dez longos e entediantes anos do meu casamento. Desta vez apanhei-o bem (também, deixar a caixa dos preservativos no porta-luvas do carro, não lembra o diabo), e das outras das outras vezes, se é que as houve? . Como é que posso acreditar que esta foi a única. Se calhar até foi sexo em grupo, com homens à mistura e tudo; é bem possível, até porque faltavam quatro preservativos, só para uma noite parece-me muita fruta, sobretudo para o Ricardo que o máximo que conseguiu comigo foram duas na mesma noite.

O Leonel é diferente, trata-me com respeito, faz-me sentir uma mulher especial, faz-me acreditar que o amor até vale a pena e pode ser partilhado a dois, totalmente, sem mentiras nem traições. Ainda bem que a João mo apresentou.

Agora por isso, devo-lhe praticamente a vida. Ontem, eu e o Leonel, iamos sendo apanhados pelo Ricardo, quando ele voltou inesperadamente da sua suposta viagem de negócios ao Porto. Ainda bem que a João ficou lá a dormir nessa noite, o pobre do Leonel é que dormiu mal, encolhido dentro daquele guarda-fatos antigo. Ainda bem que não ressonou.

O palerma do Ricardo não desconfiou mesmo de nada, dormiu que nem um lorde, ou, se calhar, fingiu, a acreditar na João que se queixou de alguns encostos e toques durante a noite, aparentemente fruto de um sonho mais intenso. Não me admirava nada que estivesse com algumas tentações em relação a ela. A João é uma mulher toda gira, tal como o comum dos homens gosta; farta cabeleira loira, olhos verdes e um corpo de sonho, bem abastecido. Até na inteligência é uma mulher perfeita, pois não prima por ser nenhum génio.

A minha atenção foi desviada pelos acordes finais da Cavalgada das Valquírias que saiam descaradamente do piano. Gotas de suor nasciam na testa do pianista e deixavam linhas brilhantes, à medida que deslizavam e se espraiavam ao longos das fartas sobrancelhas que lhe protegiam os olhos. A música terminou, mas o som das últimas notas ressoou pelo Salão, ainda durante bastante tempo; segundos, minutos, horas?. Não tinha a noção de quanto tempo flutuara na semi-embriaguês provocada pelo vodka tónico, só sei que fui despertada pela aproximação de um vulto alto e por uma voz quente que me perguntou:

- Então, vamos?!

Como num sonho, levantei-me; parecia levitar. Aceitei a mão que esperava insistente pela minha e atravessei o Salão de chá, tendo somente a vaga impressão das figuras que flutuavam à minha volta. Já quase a tocar a porta de regresso, fui tomada por uma súbita apreensão, para não dizer pânico; onde é que estavam as três velhotas da véspera? Não as tinha visto ainda. Sem compreender bem porquê sentia que era vital vê-las, saber que as três estavam ali, bem de saúde e, talvez, reconciliadas umas com as outras e com as suas vidas.

A mão dele tornou-se agressiva e deu-me um puxão violento, mas o suor nela acumulado permitiu que me conseguisse libertar por breves momentos, o suficiente para me deixar rodar sobre uns pés que deviam ser os meus, embora quase não os sentisse, e procurar as minhas amigas idosas. Acho que percorri todo o Salão com passadas apressadas, praticamente a correr, evitando os criados e os diferentes obstáculos que me iam surgindo do nada da minha imaginação. Demorei, o que me pareceu ser uma eternidade, até dar com elas. Só depois percebi que a minha tarefa tinha sido dificultada por estar à procura de três mulheres quando, na verdade, só lá se encontravam duas. Uma delas, era a inconfundível Beatriz, a outra, embora de perfil, não a consegui identificar logo, só quando me aproximei é que reparei na bengala encostada à sua cadeira e no mesmo lenço violeta que trazia, desde a véspera, a afagar o pescoço, preso por um anel delicado, onde sobressaía um minúsculo diamante. Joaquina!

Olhei para a Beatriz com um ponto de interrogação no olhar e, não sei porquê, a pergunta que articulei foi inaudível, um mero mexer de lábios só por ela compreendido. Espantou-me a sua cara angustiada, o seu olhar atormentado. Nada tinha a ver com a mulher que, no dia anterior, aparentara tanta confiança e segurança na sua postura.

Beatriz espreitou de relance para a Joaquina e a sua expressão aliviou-se ligeiramente ao verificar que esta observava distraidamente as flores coloridas, dispostas com cuidado, por debaixo do enorme espelho que reflectia e ampliava, até ao exagero, tudo e todos dentro do Salão. Olhou, então, para mim, abanou suavemente a cabeça num gesto de negação e levou a mão direita ao coração. Uma lágrima surgiu-lhe no olhar. E eu, apesar da minha embriaguês de desvario, compreendi que algo trágico e inesperado acontecera à Violante. Instantaneamente olhei, horrorizada, para o espelho, através do qual podia ver a cara da Joaquina, e sobressaltei-me ao dar com os seus olhos suspensos nos meus, sem um sinal de reconhecimento, sem um vislumbre de emoção. Num relance de segundos, vi reflectido no brilho demente do seu olhar todos os acontecimentos da véspera. Fiquei aturdida, olhei para a Beatriz na esperança de ver as minhas suspeitas varridas pela incongruência, mas limitei-me a receber medo e tristeza. Uma tristeza profunda.

Perdida na minha mente confusa, fugi dali como quem procura a sua própria salvação. Corri. Parecia que corria há séculos quando aterrei nuns braços fortes que me esperavam e me estreitaram. O perfume daquele peito era-me familiar. Ergui a cabeça e olhei-o numa súplica. E do mais fundo de mim própria saiu um soluço praticamente incompreensível:

Leva-me contigo, por favor. Quero esquecer que esta vida existe!









TERCEIRO DIA


Acordei sobressaltada, sem saber onde me encontrava. Olhei à minha volta e reparei que, afinal, estava no meu quarto, enfiada na minha cama, enrolada num emaranhado de lençóis e cobertores. Vestida dos pés à cabeça; até as botas tinha ainda calçadas.

Vasculhei na minha memória, à procura de referências que me indicassem como tinha vindo parar ali. Mas a noite anterior não passava de um vazio preocupante. A última imagem que guardava era a de um bar escuro, onde o ar se podia cortar à faca, tal a saturação de fumo e suor. Tinha uma ligeira recordação da sonoridade suave de um piano que me tinha mantido a vaguear num limbo de semi-inconsciência e com uma ténue sensação de ainda estar viva.

Pulei da cama, mas depressa me arrependi, pois a tontura que me dominou foi quase fatal. Apoiei-me ao puxador do guarda-fatos, até conseguir equilibrar o pensamento e fui à casa de banho enfiar a cara dentro de água fria. O resultado não foi, desde logo, brilhante, mas, pelo menos, deu para conseguir voltar ao quarto, vestir o meu fato de treino e calçar os ténis de corrida, novinhos em folha, que o meu irmão me oferecera nos anos. Depois destas actividades violentas, lá me atirei pela escada abaixo até à rua, onde desatei a correr sem direcção definida. Corri que nem uma louca, como quem foge da vida ou, simplesmente, de si própria. Esqueci-me completamente da Faculdade, dos meus colegas, dos meus adorados livros policiais e até do meu professor de História de Arte que me andava a colorir os sonhos com imagens perigosas de erotismo. Só pensava em correr e transpirar, como se assim pudesse ilibar o meu corpo e limpá-lo perante mim própria.

Antes mesmo de eu própria me ter apercebido, já estava a entrar na rua do meu destino. Ainda consegui forçar as minhas pernas a correrem até ao fundo da rua, só que fui dar a um beco sem saída e a curiosidade (que como se sabe acabou por matar o gato) tornou-se mais forte do que a vontade de me reabilitar e lá fui eu, direitinha, enfiar-me na boca do lobo, isto é, na vida do meu outro eu.

Embora todos os objectos permanecessem exactamente na mesma posição dentro do Café, as sombras que o habitavam estavam diferentes. Lá fora, o Sol dos dias anteriores fora substituído por um céu pardacento que criava um ambiente totalmente diferente, mais carregado e soturno.

Não me deixei intimidar por aquela recepção, algo fantasmagórica, e encaminhei-me para a porta de acesso ao local que já se tornara uma espécie de refúgio. Ali já me sentia praticamente em casa, embora soubesse que naquele espaço tudo parecia ser possível e que, sobretudo, as aparências iludiam e bem.

Naquele dia, não parecia haver nenhuma novidade. Não fui bombardeada por holofotes, nem sons fora de tempo. O ambiente aparentava a normalidade surreal do primeiro dia. Suspirei num misto de alívio e desapontamento. Tal como no dia a dia em que frequentemente era acometida pela expectativa de me ver envolvida em algo de novo, inesperado, que imprimisse um sabor intenso à vida, sempre que entrava ali tinha a esperança de encontrar uma qualquer originalidade à minha espera.

Estava eu a preparar-me para descer o último dos dois degraus de acesso ao Salão, perdida em pensamentos desconexos, quando fui empurrada, com brusquidão, por uma mulher que passou por mim sem cerimónia, como se nem tivesse dado pela minha pessoa. Da forma como fui lançada contra a parede, mais parecia ter sido abalroada por um tanque de guerra ou atacada por um violador sequioso.

Martelou, com os seus saltos altos, o chão de madeira envernizada e parou bem no centro do Salão, com ar de dona do mundo e arredores. Varreu todos os presentes com um olhar que, com certeza, pretendia ser intimidatório, mas perante a indiferença retribuída, viu-se forçada a refrear a maior parte da sua animosidade.

Eu continuava especada, à entrada, como quem espera um convite para entrar. Na realidade, acho que me limitava a estar ali, curiosa em relação àquela nova personagem, saída, ou melhor, entrada sabe-se lá vinda de onde e com que objectivo obscuro. Pelo aspecto procurava alguém. Porém, as suas intenções não me pareciam ser as mais simpáticas, a avaliar a sua atitude corporal e visual.

Não sei bem o que me acordou da semi-letargia em que me encontrava e me fez, de repente, reagir. Talvez alguma campaínha de alarme tenha soado dentro da minha cabeça ao vê-la encaminhar-se para a mesa que há dois dias partihava com a minha companheira escritora. Talvez o receio de perder o meu lugar naquela mesa estrategicamente localizada. Talvez, ainda, o facto das folhas escritas (já tão familiares), desarrumadas e abandonadas à pressa, me darem uma pista sobre o que poderia estar para acontecer. A verdade é que caminhei apressadamente para chegar à mesa, se não antes, no mínimo, ao mesmo tempo que aquela mulher que, evidentemente, não se enquadrava naquele espaço nem naquela dimensão. Enquanto divagava pelas mesas, ia procurando, à minha volta, a dona das escritas, mas não a conseguia vislumbrar em lado nenhum.

Antes mesmo que pudesse conjecturar sobre aquela ausência inesperada, fui abordada pela mulher que me perguntou num tom desagradável:

- Onde é que está a miúda de cabelos compridos pretos e óculos de aros azúis?

Tive a oportunidade de a observar com alguma atenção, pois encontrava-se a menos de um metro do meu proeminente nariz. Não era feia; ligeiramente mais baixa do que eu (o que não era propriamente um defeito), cara oval, olhos comuns, castanhos, boca bem desenhada e pintada de vermelho carregado, nariz fino e cabelos cortados à pagem, loiros, talvez pintadoos. Usava botas de cano pretas, não muito altas, saia curta (tipo cinto largo) aos quadrados pretos e brancos e camisola de lã grossa, vermelha como a sua boca.

- Oiça lá, não ouviu o que lhe perguntei?

Confesso que a minha primeira tentação foi a de ser mal-criada, mas a curiosidade foi mais forte do que o amor-próprio, pelo que me limitei a pô-la, suavemente, no lugar:

- Bom dia! – fiz uma pausa intencional que, contudo, não foi aproveitada pela minha interlocutora e prossegui – Não sei de quem a senhora está a falar, visto que esta mesa, neste momento é só minha. A papelada por aqui espalhada é minha e o lugar, a mais, está à espera do meu irmão que, como sempre, está atrasado.

- Pois, pois! Eu sei bem que ela esteve por aqui perto, ainda se sente bem o seu perfume no ar. E visto que este lugar deprimente não tem mais nenhum buraco por onde sair, é tão evidente como 2 + 2 serem 4, não acha?

Embora tenha ficado um pouco abalada na sua convicção e segurança, arranjei, ainda, lata para ripostar com descaramento:

- Mas afinal, o que raio é que você quer dessa rapariga ?

A mulher olhou para mim, surpreendida pelo meu à-vontade e respondeu:

- Não tem nada a ver com isso. O assunto é demasiado delicado e desagradável para que possa ser comentado com terceiros e, de qualquer forma, você já disse que não a conhece ou será que reconsiderou desde há pouco?.

- Mera curiosidade feminina, minha cara – defendi-me eu, sem dar mostras da preocupação que me ia na alma. Certamente, aquilo era assunto que metia homens e relações ambíguas. Coitada da rapariga se ia levar com esta perua. Agora por isso, onde é que ela se teria metido. Não a via em lado nenhum e, tal como observara aquela mulherzinha convencida, não havia ali dentro outra saída além da porta que dava para o Café.

Com a maior das descontrações, a mulherzinha sentou-se à mesa, no meu lugar, de onde se podia contemplar no grande espelho do fundo. Começou por reorganizar o seu cabelo escorrido, de seguida alisou as sobrancelhas e retocou o baton dos lábios. Apoiou os cotovelos sobre a mesa e começou a ler as folhas que se encontravam à sua frente, com o maior dos descaramentos.

- Com licença! – disse eu irritada, reunindo as folhas de papel e guardando-as dentro do meu casaco de fato de treino, bem juntinhas ao peito.

Ela limitou-se a encolher os ombros ostensivamente e, numa voz de gozo:

- Não se esqueceu de nada? Estes óculos parecem ser seus. Será que vê mal – proferindo estas palavras experimentou os óculos de aros de massa azul na sua própria cara. – Ah coitada! O seu problema é miopia, lamento muito, só gostava de saber como aguenta andar por aí sem óculos e sem ver.

Fiquei, por breves segundos, embaraçada, mas logo recuperei e, aparentando, um ar surpreendido consegui articular a custo:

- Sabe, é que uso lentes de contacto, no entanto, os óculos andam sempre comigo, visto que os meus olhos não apreciam muito corpos estranhos. Esses óculos são, de facto, meus. E agora, se me dá licença, vou arrumá-los antes que se risquem ou os perca. Peguei nos óculos com uma ligeiríssima tremura nas mãos e guardei-os no bolso interior do blusão de corrida. Notei que estava a transpirar e, no entanto, o exercício já ficara para trás há uma boa hora, pelo que tive de assumir para mim própria que estava com uma crise de ansiedade.

Não tenho bem a noção de quanto tempo passámos ali as duas, atentas, observando-nos mutuamente pelo rabinho do olho. Eu tentando mascarar a minha preocupação e ansiedade crescentes. Ela, desconfiada, mas sem ar de ter pressa em resolver o assunto que a tinha trazido até ali, nem de se pôr a andar dali para fora. E o mais ridículo de toda a situação era eu própria que, embora nada tivesse a ver com o que se estava a passar, parecia ter assumido as responsabilidades de outra pessoa, com total desconhecimento de causa.

Queria descolar a minha atenção daquela personagem conflituosa, mas não conseguia. Tinha a certeza que a mínima desatenção da minha parte poderia redundar no caos, sem, no entanto, compreender como, nem porquê.

Continuámos nas nossas posições estratégicas um tempo que me pareceu infinito, ninguém nos prestava atenção e nós não estávamos interessadas em mais ninguém, era como se só existíssemos nós as duas naquele espaço e naquele tempo e, contudo, estávamos rodeadas por outras existências, diferentes sons e odores.

Entretanto, a minha companheira escritora continuava misteriosamente desaparecida. Providencialmente, pensava eu.

Um dos criados de mesa salvou-me daquela situação embaraçosa, ao dirigir-se à mulher perguntando-lhe o que desejava tomar, um cházinho talvez.

Ela, sem aviso prévio, e sem sequer se dignar responder ao desgraçado empregado que esperava irrepreensivelmente uma resposta, levantou-se com brusquidão, agarrou na carteira que poisara no chão, ao seu lado e dirigiu-se ruidosamente para a única saída existente. Antes de transpôr a porta olhou-me por cima do ombro e lançou-me um sorriso que teve o condão de me surpreender, tal o frio que me atingiu como uma chicotada. Só me lembro de pensar que não gostaria de ter aquela mulher como inimiga. Tinha olhar de bruxa.

Perdi-me nas minhas conjecturas durante um bocado, período em que não prestei a mínima atenção ao que se passava à minha volta, nem sequer me apercebi que o lugar na minha mesa, abandonado momentos antes pela misteriosa mulher, tinha sido de novo ocupado pela minha companheira escritora.
Respirei de alívio, sem conseguir definir bem porquê.

Olhei para ela, surpreendida e em jeito de pedido de esclarecimentos, mas a minha rapidez não se revelou suficiente e foi, desde logo, frustrada, pois ela já escrevia, veloz e intensament,e nas suas folhas de papel branco:


Queridíssima Amiga,

Nem imaginas o que me aconteceu ontem. Nunca pensei ter de me sujeitar a uma cena daquelas. Estava muito descansadinha em casa, a esperguiçar-me entre duas almofadas e a ver o último episódio do Twin Peaks, quando ele me aparece, com grandes histórias e falinhas mansas a transbordar súplicas de amor e paixão. Ainda não tinham decorrido 10 minutos daquela cena punjente quando o telefone tocou. Ingénua e inconsciente do que me esperava, atendi. Adivinha quem é que surgiu do outro lado da linha …???; “su mujer”. Se não estivesse sentada (no chão, por sinal, visto ainda nem sequer ter arranjado uns tostões para comprar um esquentador, quanto mais um sofá), tinha caído de rabo.

A tipa queria saber se ele estava comigo, já que o tinha seguido até ali. Em vez de a mandar à merda, como seria suposto, dei por mim a responder-lhe com a voz mais sincera que consegui arranjar, dadas as circunstâncias. Assegurei-lhe que não sabia onde parava o marido dela, nem nisso estava minimamente interessada. Resumindo, menti com quantos dentes tinha na boca, (alguns ainda os originais, mas, a maioria, já postiços). Entretanto ele continuava sombrio, apavorado, encostado à parede, assemelhando-se a um rato apanhado numa ratoeira. Por fim, e após mais umas mentirolas, lá consegui despachar a mulher, pelo menos foi o que pensei naquele segundo.

Mais 10 minutos de discussão entre nós os dois e eis que toca a campaínha da porta. Até me ia dando uma coisinha má, devido ao pressentimento que me esfriou a cabeça. E não é que era mesmo o raio da mulher que estava especada à porta da rua e pretendia subir para ter uma conversinha comigo sobre o “pulha do marido”.

Nessa altura, ele ficou mesmo à rasca e quis pôr-se a andar. Era só o que me faltava, depois de me ter sujeitado àquela situação humilhante. Como deves calcular, visto que já me conheces relativamente bem, não o deixei fugir. Assim, decidi trancá-lo à chave no único quarto da minha acanhada casinha, o meu. Depois disso, inspirei profundamente, tentando limpar a alma, já que o corpo estava uma lástima, e preparei-me para o que me iria surgir por detrás da porta.

Ouvi um suave bater que mais me pareceu um gato a roçar-se na madeira da porta. Abri-a, com alguma precaução, não fosse a mulher vir armada. Ela entrou, bamboleando o seu grande rabo, (é natural que repare nestes pormenores já que o meu é praticamente inexistente), olhou primeiro para todos os cantos da casa (que eram bem poucos) e só depois para mim. Felizmente não foi ao ponto de passar o dedo pelos móveis para avaliar o pó. Passado um minuto completo, sibilou:

- Pensei que você fosse mais velha, afinal é bem novinha, por isso ainda compreendo menos porque anda a perder tempo com o nabo do meu marido.

Como deves calcular fitei-a estarrecida perante aquela abordagem tão directa e, sobretudo, tão desagradável. Só tive tempo de pensar que ela merecia uma resposta à maneira, mas fiquei-me pelo pensamento, pois antes de conseguir abrir a boca para articular qualquer coisinha, ela prosseguiu o discurso que, sem dúvida, ensaiara em casa, frente ao espelho.

- Somos ambas mulheres formadas, segundo sei. Você é muito nova e certamente não quererá para o seu futuro um homem tão primário e burro como o meu marido. No meu caso, confesso que já estou um bocado farta dele, não tem conversa de jeito. Mas tenho de pensar que temos dois filhos e, a dura realidade é que nunca é muito bom ser uma mulher divorciada, afugenta os homens de interesse. Acredite em mim, é sempre bom ter um homem em casa, para o que der e vier.

- Bem, eu gosto dele como ele é.

Consegui finalmente integrar esta frase naquele chorrilho de enormidades. A certa altura, a meio do seu monólogo, deixei de conseguir ouvi-la, limitava-me a olhar para os seus lábios, de onde parecia sair um blá, blá, blá ininteligível. Pus-me a pensar como era possível uma mulher falar daquela maneira sobre o homem com quem casara (por amor ?) e com quem tivera dois filhos (frutos de explosões de amor?). Lembrei-me do homem que eu tanto amara, e ainda continuava a amar, fechado no meu quarto e cheguei a ter pena dele, tal a falta de respeito e desamor entre os dois.

Resumindo e concluindo, e para não adormeceres com a minha narrativa, vou encurtar a cena. Lembro-me vagamente dela ter passado às ameaças quando percebeu que a persuasão melodramática não funcionava comigo. E que ameaças! Metia bruxaria e feitiços.

Imagina no que a tua amiga está metida; não me bastava o tipo ser casado, ainda tinha de ter uma mulher completamente apanhada do sistema e obviamente perigosa.

Quando, finalmente, consegui ver-me livre dela, abri a porta do quarto. Ele lá estava, num estado deplorável, como seria de imaginar, após ter ouvido aquele chorrilho de simpatias. Eu entrei em desespero, gritei, esperniei e, por fim, dei comigo a bater com a cabeça contra os vidros da janela do quarto. No final, quando já não suportámos mais a dor um do outro e a distância que enchia o quarto, acabámos, como sempre, na cama a fazer juras de amor eterno.

A rapariga parou de escrever, lágrimas grossas deslizavam-lhe pela cara e caiam, pesadas, sobre as folhas de papel escritas, transformando as palavras em pequenos lagos de contornos azuis irregulares.

Olhou para a frente, onde eu me encontrava incomodada pelo seu sofrimento, mas o seu olhar passou através do meu corpo, ausente do espaço e do tempo presente. O brilho no seu olhar era fruto da devastação interior, resultado de uma vida ainda tão curta, mas já tão irremediavelmente marcada.

Era angustiante ver aquele abismo ir aumentando, sem saber o que fazer para, de algum modo miraculoso, preencher o vazio de solidão e carência que gradualmente iam destruindo aquela alma. Nunca antes deparara com uma camada tão grande de sofrimento, enrolado em tão profunda frustração.

Comecei a ficar gradualmente mais nervosa e sentia-me à beira de um ataque de ansiedade. Sabia que o mais saudável era sair dali rapidamente, antes que elouquecesse de vez. O melhor teria sido nem sequer voltar àquela ilusão de paraíso, repleto de cores espectaculares e aromas estonteantes. Só que cada dia que passava me sentia mais ligada ao espaço onde toda a minha vida parecia estar para se desenrolar.

O meu coração começou a perder o tino e a bater descompassado, creio que ecoava por todo o Salão. Transpirava estupidamente. Sem qualquer sombra de motivo, sentia que todas as pessoas ali presentes me observavam com intensidade. Em vez de aceder aos seus pensamentos e às suas emoções naquele dia só conseguia ver olhares de censura, expressões de compaixão, trejeitos de desprezo. Fechei os olhos e tudo pareceu girar à volta da minha cabeça. Todo o meu corpo foi percorrido por uma náusea fortíssima. Creio que perdi os sentidos por alguns momentos, não sei se apenas durante escassos segundos, se minutos ou mesmo horas, só sei que quando voltei a mim, reabri os olhos e estava completamente sozinha na sala. Nem queria acreditar. Senti-me tão profundamente só que comecei a chorar, feita menina parvinha. Limpei as lágrimas com a manga do casaco de fato de treino, levantei-me, determinada, e saí a correr para o Café, onde tropecei numa bengala que, de repente, me pareceu familiar, nem parei para o confirmar tal a sensação de solidão que me envolvia, continuei a correr até à rua e daí até à porta da Faculdade, onde parei e me sentei na escadaria para recuperar o fôlego. O meu primeiro sentimento foi o de surpresa ao ver tudo deserto à minha volta, só alguns minutos mais tarde é que reparei que já era noite cerrada. A minha noção de tempo estava totalmente desconcertada. Deixara de conseguir situar-me temporalmente, aliás a minha cabeça era um emaranhado de sentimentos e emoções alheias à minha pessoa. Sentia-me um confessionário de carne e osso, onde as pessoas que se cruzavam comigo naqueles últimos três dias se aliviavam das angústias e frustrações emocionais. Agarrei a cabeça com as duas mãos e comprimi-a entre os joelhos, na esperança de a espremer até a esvaziar por completo, tal como uma laranja. Mas nessa operação só consegui arrancar alguns cabelos, enquanto que o excesso de carga continuou lá dentro, bem acondicionado.

Decidi continuar a minha corrida, desta vez até a casa. Talvez o esgotamento físico me fizesse perder a capacidade de pensar e recordar os pensamentos dos outros. E foi num estado de semi morta-viva que me lembro vagamente de chegar a casa. Sei que ainda fui capaz de me despir e de me atirar para dentro de um banho quente, repleto de espuma. E foi no meio destas nuvens de sabonete que devo ter adormecido ou melhor, desmaiado, pois após a sensação de estar envolvida por um ambiente leve e quente não me recordo de mais nada. Morri para o mundo!





































QUARTO DIA



Afinal acabei por voltar a acordar. Feliz ou infelizmente, o meu irmão devia ter-me tirado da banheira para me pôr na cama, visto que não tinha morrido afogada. Não me apetecia nada acordar mais uma vez, embora o pesadelo em que tivera o azar de circular durante toda a noite já me começasse a bulir com o sistema nervoso. Lá consegui sair dele ilesa, mesmo antes da minha Prof. de Arte Contemporânea me cortar a cabeça com uma moto-serra ferrugenta, ao mesmo tempo que gritava desalmadamente, vermelha que nem um tomate passado, que eu tinha de ser punida por ter falhado, pela décima vez, o trabalho sobre o Mário de Sá-Carneiro. Credo nem a bota batia com a perdigota; o que raio é que o Mário de Sá-Carneiro teria a ver com a Arte Contemporânea. Isto de ter mudado de curso a meio do ano não se estava a revelar lá muito saudável.

Ia morrendo de susto quando, ao abrir os olhos, deparei com uma figura que se debruçava sobre mim. Por momentos cheguei mesmo a acreditar que ia ficar sem a minha rica cabecinha; embora não fosse nada de especial, era a única que tinha. Felizmente era só o meu irmão mais velho que queria confirmar se eu ainda pertencia ao reino dos vivos. O facto do meu irmão reparar na minha ausência era praticamente inédito, pelo que o olhei surpreendida. Ele limitou-se a encolher os ombros, a apontar com o queixo para a mesa de cabeceira, voltar as costas enquanto grunhia um, quase incompreensível, bom dia e saia do quarto naquele seu passo característico, ligeiramente felino e totalmente silencioso.

Fiquei toda arrepiada, aquele gajo, embora fosse efectivamente meu irmão, preocupava-me e chegava mesmo a assustar-me. Estremeci.

Fui recuperando perguiçosamente de todas as emoções a que tinha sido sujeita durante o processo de despertar e olhei, indolente, para o fatídico relógio da mesa de cabeceira. Foi nessa altura que compreendi o olhar do meu irmão. Nem podia acreditar que eram três horas da tarde. O que diabo se estaria a passar comigo?. Geralmente nem conseguia dormir mais de 5 ou 6 horas por noite. Estaria a tornar-me, finalmente, uma mulher interessante, daquelas que são frequentemente sujeitas a stress e depressões?. Credo, não podia ser!.

Felizmente era quinta-feira, único dia da semana em que não tinha aulas na Faculdade. Assim, enrosquei-me, ainda durante uma boa meia-hora, agarradinha à minha almofada e tentei recuperar o meu pesadelo, de forma a permitir-me vencer a sacana da Prof. assassina, capturar-lhe a moto-serra e vê-la implorar pela sua linda cabeça, em cima da qual se empinava uma ridícula cabeleira côr de laranja.

Virei-me e revirei-me, vezes sem conta, mas a luz que conseguia passar através das frinchas das batentes da janela não me deixou voltar a adormecer e, embora de má-vontade, tive de admitir que era melhor levantar-me. Estava furiosa com o meu irmão e ainda fiquei pior quando ao tentar abrir a porta da casa-de-banho esbarrei com o nariz na dita e percebi, através do olfacto que ele estava no seu período diurno de introspecção sanitária. Gritei-lhe um nome feio qualquer, ao que ele respondeu com um indiferente grunhido, e virei-lhe as costas, encaminhando-me em direcção ao WC dos meus pais, onde pude tomar um duche e reconciliar-me com o mundo em geral e com a minha professora em particular.

Após estas andanças caseiras, tentei sentar-me a estudar, mas as linhas dos livros saltavam à frente dos meus olhos, sem que me fosse permitido ordená-las, de molde a apreender o seu sentido.

Apesar de admitir que era um erro, desisti rapidamente das minhas intenções eruditas e passei para a segunda fase, isto é, comecei a tentar resistir ao pensamento, vítima da curiosidade doentia que sentia pelo Salão. Era como se estivesse encantada pelo seu odor ou pela sua música envolvente. Enquanto entretinha a cabeça com estas lutas interiores, o meu corpo lá ia, seguro, descendo a escadaria do metro. Desisti de tentar resistir à atracção incontrolável que me arrastava para a rua, sem saída, do Café abandonado.

Estávamos no Inverno e os dias desapareciam rapidamente. Quando parei à entrada do Café já era noite, embora fossem só 5 horas da tarde. Era a primeira vez que ia ali à noite e se durante o dia aquele espaço me tinha parecido monótono e algo soturno, envolvido pela noite tinha o aspecto de uma casa fantasma. Um pensamento fugaz passou por mim ao de leve, não foi mais do que uma recordação que não consegui reter e que fugiu no preciso momento em que alcancei a minúscula porta de ligação ao Salão e girei a maçaneta, de forma a abri-la e a entrar.

Não foi com grande convicção que transpus a porta já tão minha conhecida. Confesso que me sentia dominada por um receio incómodo, indefinível. Observei o Salão, à espera de qual seria a loucura do dia ou da noite, para ser mais precisa. Aparentemente tudo regressara à normalidade. A rapariga escritora ocupava o seu lugar e escrevia, imparável, com a sua atitude corporal tensa e ansiosa. O casal, recentemente desentendido, voltara à sua mesa que se situava junto da porta onde eu continuava parada, hesitante. As velhinhas, só duas ?, continuavam aconchegadas na sua mesinha à frente do grande espelho. E o homenzinho careca, continuava sem cabelo, mas abandonara a sua postura impecável e o seu traje aprumado e elegante. Tinha um aspecto amarrotado, a roupa em desalinho, a rosa branca da lapela já murcha e o laço ao pescoço descaído para o lado direito. Aliás, todo ele parecia vacilar com o seu olhar perdido e angustiado e a sua postura tão desconcertada. Durante um bom espaço de tempo, o seu olhar não se descolou da chávena que tinha à sua frente, sobre a minúscula mesa que ocupava. Eu estava ansiosa por saber o que o entristecia e desnorteava àquele ponto. Pela primeira vez, desde que entrara naquele mundo à parte, era eu que fazia questão em saber o que se passava com um dos personagens do Salão, aparentemente de carne e osso. Só que desta vez, estava sem acesso ao olhar daquele homem perturbado, logo, os seus pensamentos e emoções estavam-me, aparentemente, vedados.

Não sei quantas voltas deu o ponteiro dos minutos no meu relógio, inúmeras com certeza, até à minha espera ser recompensada. Acho que ele, a certa altura, entrou um pouco em pânico com a sua própria solidão e com as imagens do futuro que vislumbrava no chá por beber que ocupava a chávena, da qual não deslocara, até àquele momento, a sua concentração.

De repente ergueu os olhos, como quem procura outros olhos num pedido de ajuda. Encontrou os meus que ali ficaram presos como num beco sem saída. A desventura espelhada no seu olhar verde escuro chegava a ser constrangedora. Apesar de toda a minha curiosidade, a boa educação ou a hipocrisia social, tentei desviar o olhar e centrar a minha atenção na planta aromática que estendia as suas amplas folhas na minha direcção. Vã tentativa, algo me atraía irresistivelmente para os pensamentos daquele homem triste. O apelo do seu olhar era impossível de ignorar. Assim, deixei levar-me pelos meus pensamentos que, mais uma vez, se fundiram com os dele, como se os conseguisse ler através de um processo telepático inédito:

Como é que o Henrique teve coragem de fazer isto comigo. Ontem chegou ao pé de mim e, sem qualquer pudor, comunicou-me que ia casar. Nem quis acreditar, por momentos pensei que estava simplesmente a arreliar-me e desatei a rir, um pouco descontroladamente, é certo. O filho da mãe, ficou ali, impávido e sereno, à espera que me passasse o ataque de histeria, a fumar descontraidamente o seu cachimbo. E quando finalmente descarreguei todo o meu nervosísmo, ele voltou a repetir calmamente, - Vou casar! Não é nada do outro mundo, a vida continua e nós também podemos continuar a encontrar-nos, de vez em quando, basta deixarmos passar uns tempos logo a seguir ao casório, por uma questão de moral, topas? … . Blá Blá Blá Blá, … , ele continuou a debitar enormidades, intercaladas com brejeirices de mau gosto. E eu ali estive, feito estúpido, a remoer toda a minha frustração, a sentir a dor a ganhar o terreno do meu corpo, a pouco e pouco. Dei por mim a pensar na morte lenta do Sócrates, com a cicuta a ganhar-lhe os membros, um a um, só que como numa fotografia a negativo, pois em vez de deixar de sentir o meu corpo, cada vez tinha maior consciência da dor e do desespero que me causava a simples perspectiva do Henrique ser tocado por outro ser humano, e ainda por cima uma mulher. Fui entrando em pânico aos poucos e, de repente, não sei o que me deu, subiram-me uns calores de revolta e fúria, acho que até comecei a deitar fumo pelas narinas e pelos ouvidos. Devia parecer uma panela desvairada, a exalar vapor violentamente. Só pensava em calar a boca àquele tipo mesquinho e egocêntrico que já nem conseguia reconhecer. Mas ele continuou a divagar, indiferente aos meus sentimentos, como sempre aliás, ao longo destes 11 anos de não-relação. Quando dei por mim já lhe tinha dado dois murros na cara. O cachimbo voara para parte incerta e do seu artístico nariz escorria um fiozinho de líquido vermelho. Demorei algum tempo a compreender que era sangue e que o responsável era eu.

Pareceu-me ouvi-lo desatar a gritar, pois tinha a boca escancarada, mas eu perdera a capacidade de ouvir, tal a loucura em que estava imerso. A minha única urgência era calar-lhe a boca, fechá-la para nunca mais ouvir baboseiras românticas, clichés amorosos, sem pingo de verdade. Tudo mentira, tudo um engano.

Continuei a bater-lhe, mesmo depois de ele já estar ajoelhado aos meus pés a implorar que parasse. Chorava como uma Madalena. Pela primeira vez tive a certeza que as lágrimas e os lamentos implorativos eram sinceros. Peguei-lhe no queixo sujo de baba e sangue, olhei-o bem nos olhos e só lá encontrei espanto, o resto era um fundo negro, infindável, sem emoções. Dei por mim a ter pena da mulher que o ia levar para casa. Desprezei-me por ter perdido 11 anos da minha vida com um homem desinteressante como aquele. Senti-me sujo por ter enganado a minha mulher e as minhas filhas, únicas amigas da minha vida. Odiei-me pelo meu desejo irracional e pela minha insatisfação permanente. Só consegui dizer-lhe que não prestava como ser humano. “és um merdas Henrique!”.

Libertei-lhe o colarinho e virei-lhe as costas… .

Não aguento mais, a minha cabeça é um turbilhão de pensamentos sem nexo. Não consigo dormir desde essa cena macaca. Não vou a casa há já dois dias. Não consigo encarar a minha família. Acho que cheiro mal, até porque não tomo banho há dois dias… . Mas tive de vir aqui despedir-me deste espaço de confissão que me deu guarida durante os dias mais negros da minha vida, sem imposições, nem regras. Só não sei se vou morrer, se ainda mereço sobreviver.

Sentia-me apanhada naqueles pensamentos, colada à angústia e desespero daquele homem, como uma formiga presa num minúsculo pingo de mel. E assim fiquei, suspensa e dependente do seguimento de uma vida que, até há bem poucos dias, me era totalmente estranha e indiferente. Os seus pensamentos ecoaram, ainda durante muito tempo, na minha cabeça, até que fui agredida por um ruído seco. Uma cadeira tombara e embatera no impecável chão de madeira. Foi como se despertasse de um pesadelo incómodo e doloroso, só que não me senti aliviada por ver a realidade à minha volta, aliás acordara para a continuação do que era suposto ter sido exclusivamente um sonho de outra pessoa.

Olhei à minha volta. Após o estrondo da cadeira, fez-se um silêncio semelhante ao que segue uma quebra de electricidade, quando todas as máquinas domésticas se calam. Todas as pessoas presentes no Salão pareciam figuras de cera, tal a imobilidade em que estavam suspensas. A minha companheira da mesa deixara de escrever, embora mantivesse a esferográfica suspensa na mão. Reparei, não sem alguma surpresa, que olhava fixamente para mim ou através de mim, não tinha bem a certeza. Só sabia que me sentia a olhar para um espelho onde os meus próprios olhos me estudavam intensamente.

Achei que estava a delirar ou, simplesmente, armada em esperta.

Virei a cabeça, em câmara lenta, como nos filmes românticos e, antes de conseguir detectar a origem do barulho que, de algum modo, me despertara de mim própria, dei de caras com o casal exótico que no dia anterior me amarfanhara com a sua história conjugal algo peculiar. Também estes dois me fixavam, sem expressão, como se olhassem uma peça de mobiliário nova no local, mas sem nenhum interesse particular.

Sentia-me cada vez mais perplexa, não compreendia porque razão a atitude daquela gente mudara, até os empregados, que pareciam pregados ao chão, se atreviam a fixar-me. Talvez o tempo tivesse parado, talvez tivesse uma borbulha nojenta na testa ou um macaco suspenso no nariz. Talvez até naquele dia cheirasse mal, o típico odor a suor, uma mistura desagradável de cebola e alho. Não fazia a menor ideia. Sentia-me constrangida por repararem em mim com tanta insistência, sempre achara tão confortável passar despercebida.. . Chegava à conclusão que era por, geralmente, ninguém me prestar a mínima atenção que me sentia tão bem naquele espaço. Embora todos me bombardeassem com as suas vidas e desventuras, ninguém parecia querer saber de mim para nada. Aliás, para além de um ou outro criado de mesa e das três velhotas do outro dia, ninguém me falava, limitavam-se a debitar-me pensamentos e imagens soltas.

Tive de abandonar rapidamente as minhas conjecturas quando compreendi que o estrondo que há momentos ouvira, resultara de uma retirada, para não dizer fuga, abrupta. O meu mais recente confidente abandonara o Salão de um segundo para o outro. E eu, já em parte recuperada da inexplicável exaustão daquele açambarcar de pensamentos e sentires alheios, dei uma espécie de salto da cadeira e, evitando todos os obstáculos materiais e humanos que surgiram pelo caminho, alcancei a famigerada porta em dois tempos. Nem quis acreditar quando, ao tentar abri-la, dei com ela trancada. Comecei por pensar que estava perra ou era eu que tinha pouca força, mas os repetidos sacões a que a sujeitei não a fizeram reagir um milímetro que fosse. Olhei para trás, para o Salão, numa procura muda de ajuda. Se há momentos atrás o ambiente estava silencioso e todos os olhares cravados em mim, naquele preciso instante tudo voltara a ser como dantes. A música exótica voltara e mesmo o odor inebriante das flores, que já me era tão familiar, recomeçara a envolver o ar. Os empregados deslizavam, discretos, entre as mesinhas e os clientes haviam retomado as suas velhas posturas e atitudes.

Virei-me novamente para a porta. Na minha ânsia, apoiei ambas as mãos contra a madeira rugosa e, sem que o conseguisse evitar, nem tão pouco explicar, ali bati três dolorosas vezes com a testa. Gritei a pedir ajuda, mas a minha voz parecia não existir ou estar totalmente desfasada daquele espaço, aliás, sentia-me uma autêntica personagem fantasma que existia apesar de mim própria. Num gesto automático agarrei o puxador da porta com ambas as mãos, creio que a intenção no meu subconsciente era a de o arrancar, custasse o que custasse. De repente, sem que disso estivesse à espera, o dito puxador de cobre rodou e a porta, como que por milagre, abriu-se-me à frente do nariz, provocante.
Demorei ainda alguns segundos a refazer-me da inesperada surpresa e a compreender que podia sair dali e ir à procura do homenzinho careca.

Por fim lá consegui reagir. Desatei a correr, o mais rápido que as minhas pernas, ainda trémulas, me permitiam. Não esbarrei em nada, nem parti nenhum objecto, o que para mim era um recorde. Lembro-me que estava em pânico, com receio de chegar tarde de mais. Saí para a rua, a chuvinha molha tolos recomeçara e estava um frio de rachar.

Aconcheguei o carapuço do meu blusão de corrida à volta da cabeça, tirei os óculos, já que não conseguia ver nada através dos pingos de chuva que adornavam as lentes e ganhei coragem para me aventurar naquele dia tão soturno. Ao virar a primeira esquina, vislumbrei a careca do homenzinho que seguia uns bons passos à minha frente. Enquanto apressava o passo para o alcançar, pensava que não compreendia como era possível ser-se homossexual e, em simultâneo, manter um casamento com um ser do sexo oposto e, pior ainda, sustentar uma família com base numa mentira tão insólita.

Corri no seu encalço, tentando proteger-me, o melhor possível, das milhares gotinhas de chuva que caíam insistentemente, colando-me às paredes das casas, na esperança que uma ou outra varanda me salvasse do completo ensopanço.

Ao virar a segunda esquina, quase que tropecei nele. Estava de cócoras, encolhido, como uma criança perdida e em pânico por não encontrar a mãe. Toquei-lhe ao de leve com o pé, mas não passou de um ténue contacto físico. Ele nem sequer se apercebeu da minha presença à sua frente. No meu caso, aquele fugaz toque de corpos envolveu-me de uma forma incrível. Fiquei ali parada, a olhar para a figura que se encolhia à minha frente e escondia a cabeça entre os braços. Custava a crer que aquele fosse o mesmo homem elegante e impecável que conhecera havia apenas três dias.

Não sei quanto tempo estive ali à espera que ele recuperasse a compostura. Como continuava sem nenhum sinal da sua parte que, comecei a ficar preocupada com a sua imobilidade, algo inhumana e cheguei ao ponto de desconfiar que estivesse acordado. Inclinei-me para a frente, estendi o braço direito e toquei-lhe suavemente com a mão, não só para tentar chamar a atenção, mas principalmente para me assegurar que estava vivo.

Ainda se escoaram alguns segundos, longos, antes que aquele corpo imóvel desse mostras de ter sentido o contacto da minha mão no seu ombro. Aliás, estava quase a desistir, pois o frio e a chuvinha irritante começavam a agarrar-se ao meu corpo e já pareciam ter atingido os ossos. Mesmo no limite da minha resistência física e moral, ele ergueu o seu olhar vazio na minha direcção. Os seus olhos cinzentos impressionaram-me. Refleciam um misto de infelicidade e desistência assustadoras.

Abri a boca com a intenção de o confortar com algumas palavras de esperança, mas só me vinha à ideia lugares-comuns já estafados. Optei por estar calada para não ofender o sentir do homenzinho com meras banalidades. Em vez disso, estendi-lhe a mão para que se conseguisse levantar com maior facilidade e, sobretudo, para, de alguma forma, lhe transmitir algum calor humano (pouco, é certo, dadas as condições atmosféricas adversas) e solidariedade. Ainda hesitou ao ver a minha mão mesmo à frente do seu nariz, mas por fim agarrou-se a ela como um náufrago se agarra ao seu salvador. Com a minha ajuda levantou-se, não sem um certo custo. E ali ficámos os dois, frente a frente, presos não sei bem em que dimensão, sem uma palavra, como que à espera um do outro.

Passada uma eternidade, acabou por ser ele a reiniciar o seu monólogo interior:

Acho que nunca mais vou conseguir voltar a entrar naquele Salão. Sempre que lá estou, sinto-me como se estivesse deitado no sofá do psicanalista, sinto que alguém me está a invadir a mente, a inspeccionar-me a alma e a tomar de assalto todos os meus orgãos internos.

Quando transponho aquela minúscula porta de entrada, toda a minha vida se assemelha a um espaço público ao qual toda a gente pode aceder e que todos podem devastar. É como se toda aquela fauna de gente peculiar tivesse capacidade de me ler os pensamentos. Aliás, chego à conclusão que o aroma exótico que envolve o ambiente deve conter algum soro estimulante do pensamento, pois, logo que o começo a inalar, perco o controlo da minha mente que, desde logo, se põe a pensar e a repensar a uma velocidade alucinante, até quase desmaiar de exaustão… .

Tinha, pela primeira vez, acesso à sua voz, sem saber bem porque artes de magia, visto que a sua boca se mantinha fechada. Era uma voz quente, apesar do tempo gelado, um pouco rouca, muito profunda e, naquele preciso momento, consideravelmente angustiada e triste. Senti-me corar violentamente ao captar as suas palavras que me assentavam que nem uma luva. O facto de alguém, inocentemente, me intitular de psicanalista era inédito. Gostaria de lhe pedir desculpa pela incursão na sua intimidade, embora eu fosse totalmente alheia a essa capacidade, mas não sabia como o fazer sem me trair e, sobretudo, sem que ele se sentisse atraiçoado. Felizmente, o homem estava tão embrenhado nos seus pensamentos que, aparentemente, nem se apercebia da minha modesta e atrapalhadíssima pessoa.

Olhava fixamente para além da minha existência corpórea. Ao princípio, a sua expressão era a de um homem alucinado, isolado do resto do mundo, perdido no espaço e nas memórias do tempo, mas, passado um bocado, vi a sua cara transfigurar-se. Os seus olhos cinzentos espelharam, num fragmento de tempo, toda a dor e arrependimento que o roiam.

Não compreendi logo o que tinha provocado tal reacção. Só quando acordei do meu espanto estupidificado, é que decidi olhar por cima do meu ombro direito e seguir a trajectória do seu olhar. Alguma coisa de muito grave devia estar a acontecer do outro lado da rua.

No passeio à frente do nosso ia a passar um casal consideravelmente elegante. Caminhavam lentamente, como quem não sabe que destino tomar, de braços dados, mas sem mais nenhum sinal de consciência da companhia um do outro. Não foi preciso um exercício de inteligência muito esforçado, para compreender que estava em presença do famigerado Henrique e da sua cara-metade.

Enquanto eles se afastavam passivos, sem dar mostras de nos terem visto, fui sendo invadida, mais uma vez pelos pensamentos do homem torturado que estava especado à minha frente. A velocidade e a violência das suas vontades e desejos eram tais que não consegui decifrar um único que fosse. Desta vez, a minha cabeça parecia querer separar-se do meu lindo pescoço e estalar. Raios, já estava a ficar farta de ser usada como arquivo de infortúnios de gente que, à partida, me era totalmente desconhecida. Começava a ficar com mau-feitio, irritada comigo própria por me permitir estar a ser tão violentada. Desatei a praguejar, de tal forma que se a minha mãe ali estivesse ter-me-ia pregado uma boa bofetada, apesar dos meus 27 anos.

Obriguei-me a abrandar o mau-humor e fixei novamente a minha atenção no pobre homem destroçado que estava mesmo colado a mim. Credo, nunca tinha visto uma postura tão miserável.

Comecei a bater-lhe carinhosamente no ombro, na tentativa de o reanimar. Este meu hábito das pancadinhas consoladoras sempre tivera o condão de irritar o meu irmão, mas podia ser que resultassem naquele caso, nem que fosse para o homenzinho me mandar à merda. A verdade é que, não sei se à custa das minhas incómodas pancadinhas ou se para vencer o frio que cada vez parecia mais violento, ele lá foi endireitando as costas, até me parecer bem mais alto e forte do que eu, o que era um excelente sinal. E lá recomeçaram as queixas:

À custa daquele gajo ia perdendo tudo, inclusivamente a minha vida. Estava disposto a sair de casa, a trocar o conforto que tinha adquirido com algum esforço, por uma situação precária, sem futuro assegurado. Estive prestes a perder o meu emprego. O que nós fazemos por paixão!

E aquele estuporado, passeia-se nas minhas barbas, com a sua gajinha novinha em folha. Sacana! Só me apetece cuspir-lhe em cima. Também, não dou nem um tostão furado por aquele casamento interesseiro. Prepara-te queridinha, o teu maridinho só gosta de cús.

Há-de vir cá lamber o chão que eu piso e, nessa altura, piso-o bem no centro da sua ferramente viril. Nesse dia, vou fazer questão de usar os sapatos vermelhos, de salto bem alto e fininho com que ele sempre se excitou mais.

Lá estava eu a participar, involuntaria e indiscretamente, na vida daquele homem. Desviei os olhos da sua cara desfigurada pelos sentimentos ácidos que lhe iam passando pela cabeça. Tinha alguma vergonha da capacidade telepática que se apoderara de mim, sem que encontrasse a razão, desde o primeiro dia em que descobrira o enigmático Salão. Embora, por vezes, esta capacidade se tornasse uma experiência curiosa. Só rezava para que ele não se apercebesse que era eu que lhe andava a devastar a intimidade.

Ficámos parados, a olhar um para o outro, naquele local desconfortável. Não sei bem quanto tempo passou até ouvi-lo pronunciar baixinho:

- Apesar da sua cara me ser estranhamente familiar, não consigo identificar onde a conheci, em que passado ou em que vida… . Mas agradeço-lhe a atenção, já me sinto um pouco mais recomposto. Está na hora de voltar para casa, a minha mulher já deve estar preocupada e, ainda por cima, prometi aos miúdos levá-los ao cinema.

A forma, exageradamente pausada, com que falava, despertou a minha atenção para o que lhe ia na mente. O parvo estava com medo de mim, pensava que era louca. As sua dúvidas e considerações silenciosas começaram a bulir-me com o sistema nervoso. Uma onda de indignação cresceu dentro do meu peito e foi ganhando terreno à razão da cabeça, até atingir a dimensão de uma vaga de fúria que ameaçava fazer-me perder a compostura.

Acho que ele interpretou a agitação da minha pessoa e a minha cara afogueada, como o pronúncio de um ataque de epilépsia ou algo semelhante. Começou a afastar-se de mim, como quem não quer a coisa, com algum receio, sem nunca deixar de me fitar através dos seus olhinhos de fuínha cizentos.

Analisei aquela cara ridícula e chamei-me estúpida interiormente. Como é que me tinha preocupado com um palonço daqueles? A raiva deu lugar a uma frustração e desilusão imensas, sem, no entanto, muita razão de ser, partindo do presuposto que aquela figura não fazia a mínima ideia que eu lhe explorava todos os pensamentos, desde o primeiro dia em que o vira.

Ele ainda olhava, receoso, para mim, quando lhe virei as costas encolhendo os ombros. Toda aquela história me surgia agora sem interesse especial, e até bastante corriqueira. E eu que acreditara ter encontrado uma forma de amor puro e original. Naquele preciso momento, toda a história do homenzinho careca com o seu adorado e estuporado Henrique se tornara insípida.

O que é que se estaria a passar comigo?. Talvez esperasse demasiado dos seres humanos ou talvez ambicionasse ser uma espécie de escarrador onde todos achavam poder descarregar os seus problemas e inseguranças. Já começava a confundir a vida de todos os que actualmente me rodeavam com a minha própria vida. Se calhar tudo aquilo não passava de sucessivos espelhos de mim própria. Que confusão!

Fosse como fosse, decidi ser a atitude mais saudável desligar-me do homenzinho ou daquela parte da minha vida. E assim o fiz.

Dirigi-me ao Café, sem pensar, como quem vai à procura de um refúgio. Entrei e preparava-me para abrir a porta do Salão, quando me apercebi de um ténue aroma que me era familiar, mas que não consegui identificar. Estaquei, indecisa. Sentia uma presença por ali. Olhei à minha volta desconfiada, à procura de um sinal qualquer que me fornecesse alguma pista sobre quem andava por ali, a seguir-me talvez. Nada parecia estar diferente dos dias anteriores, para além do odor agradável que pairava no ar, no entanto, algo parecia não bater certo. Provavelmente, era a minha imaginação delirante que começava a disparatar.

Só passado um bocado é que cheguei à conlusão que a diferença estava, tão somente, no facto de alguém ter tido a feliz ideia de varrer o chão, outrora poeirento. O chão estava no mais completo brinquinho. Não dei grande importância ao caso, mas registei-o no meu banco de de dados, sem saber bem porquê.

Olhei, pela primeira vez naquele dia, para o meu relógio de pulso e, instintivamente, senti uma fome avassaladora, quase dolorosa, seguida quase imediatamente de uma tontura que não consegui dominar. Esforcei-me por desembaciar os olhos, esfregando-os com o resto das forças que ainda me sobrava nas mãos, mas, mesmo assim, não consegui fixar suficientemente a imagem, de forma a saber exactamente que horas eram. Após alguns passos pouco firmes, consegui alcançar a porta de passagem para o Salão. Com uma dificuldade astronómica, consegui rodar a maçaneta da porta (de salvação ou de expiação?).

Entrei e, em vez da tão desejada claridade, dei de caras com a penumbra. O ambiente estava muito estranho, as sombras das pessoas sentadas à mesa e as sombras das plantas altas espalhadas pelo Salão, esticavam-se até mim, quase me lambendo os pés.

No ar circulava, não o aroma original das flores já minhas familiares, mas um cheiro enjoativo a flores murchas e velas queimadas que me despertava recordações indecifráveis, mas extremamente desagradáveis.

Estas foram as minhas últimas percepções, antes de sentir o mundo a rodar incompreensivelmente à minha volta. Todos os objectos do Salão pareciam ter ganho vida própria, enquanto que os criados de mesa e os clientes se elevavam nos ares, rodopiando, que nem diabretes, em meu redor. Só faltava o pai Diabo para começar a pensar que tinha caído no Inferno. E estas foram as imagens terminais que me acompanharam, fielmente, durante todo o longo processo do meu desmaio.

Finalmente, ao cair redonda e espalhafatosamente no impecável chão de madeira, compreendi que aquele cheiro a flores murchas e a cera me fazia lembrar o sofrimento provocado pela ausência eterna de alguém na minha vida. Mas quem?

Estendi os braços num pedido surdo de ajuda, abri a boca (escancarei-a a bem dizer), tentei gritar, pedir socorro, com todo o ar que os meus pulmões podiam disponibilizar, mas ou não emiti som nenhum ou o que saiu não impressionou ninguém. Só sei que o cansaço se tinha transformado numa raiz dentro de mim, impossível de combater. E assim, deixei-me deslizar, indefesa, para o inconsciente.




QUINTO DIA



Acordei com um peso desconfortável em cima das minhas pernas. Como sempre me acontecia quando acordava, a primeira sensação foi a de estar perdida, desgarrada do mundo dos comuns mortais.

Quando consegui situar-me no espaço em que me encontrava, uma cama desconhecida, esfreguei os olhos, na esperança de estar a ver mal, até porque estava sem óculos, nem lentes de contacto. Mas, infelizmente, só fui capaz de confirmar o que temia; aquele não era, definitivamente, o meu quarto. Não foi preciso mais nada para me fazer despertar completamente. Sentei-me na cama, com um salto acrobático que nunca mais serei capaz de repetir. Simultaneamente ouvi um baque no chão, aos pés da cama, seguido de um gemido. Olhei assustada para o fundo da cama e, entre protestos incompreensíveis, vi surgir uma cabeça luzidia. Nem queria acreditar que partilhara o quarto, durante toda a noite, com o homenzinho careca do Salão de chá. Isto significava que tinha passado a noite fora de casa. Estava feita. Só de pensar no que me iria acontecer quando chegasse a casa, até tinha arrepios. Os meus pais iam esfolar-me viva, já para não falar nas piadinhas parolas do meu irmão.

No meio desta confusão e pânico mentais, descansava-me o facto de ambos estarmos bem vestidinhos. Ele até ainda tinha o lacinho a envolver-lhe o pescoço, se bem que à banda, mas de resto estava aprumadinho, com tudo no sítio (pelo menos, o que me era dado ver). Não havia indícios de ter havido qualquer pingo de intimidade. Apalpei-me, sem qualquer intenção erótica, só para confirmar que, também eu, tinha mantido o aprumo e alguma sensatez, apesar da beleza e elegância, redescobertas, daquele homem. Para além de me faltar os ténis e os óculos, tudo o resto estava devidamente arrumado.

Após toda aquela inspecção pormenorizada, reparei que o homenzinho careca, apesar de parecer meio atordoado, olhava para mim. Tentei recordar a nossa conversa do dia anterior e como teria ido ali parar, mas, após muito vasculhar, apenas encontrei na minha memória o eco do silêncio, nenhum indício, nenhuma voz. A única lembrança que permanecia na minha cabeça, consideravelmente baralhada, era a invasão dos meus pensamentos através de um qualquer processo de comunicação telepática.. Devia estar a elouquecer, para me ter aventurado a pernoitar em casa de um desconhecido.

Toda aquela situação, além de incompreensível, era consideravelmente complexa e desagradável. Já sabia que o homem era casado e tinha filhos. Só me faltava ir tomar o pequeno-almoço com a família, em amena cavaqueira.

Abandonei as minhas cogitações e olhei para o homenzinho. Fixava-me com alguma insistência.

Não mereço a família que tenho. Sou um pulha. Não mereço viver nesta casa, nem ocupar o espaço de uma pessoa neste mundo. Entreguei-me a um homem que me utilizou indecentemente, da mesma forma que utilizei a minha mulher e os meus filhos. Menti a toda a gente. Não consigo nem quero continuar nesta situação sem o Henrique e, por outro lado, não consigo viver com o meu crime… “

Antes que eu pudesse reagir àquela disertação negativista, levantou-se do chão, abriu a janela, lançou-me um derradeiro olhar e deixou-se cair no vácuo.


Acordei alagada em suor. Sentei-me na cama de rompante e olhei para a janela que cortava a parede ao fundo da minha cama. O cortinado estava corrido e a janela fechada. O silêncio dentro de casa era profundo, nem o barulho da rua ali parecia chegar. O único som era o da minha respiração pesada, apavorada.

Após alguns minutos compreendi que ainda era de noite. A luz ténue que trespassava os cortinados provinha da Lua. Apesar da serenidade do ambiente que me rodeava, levantei-me e fui espreitar através dos vidros, para a rua. Não me senti completamente satisfeita. Abri a janela, estremeci com o frio que me embateu na cara, e debrucei-me corajosamente, de forma a poder inspeccionar a calçada. Não estava ninguém estatelado no chão. Suspirei de alívio. Fechei a janela, fui à casa de banho fazer um xi-xi e voltei para a cama. Só quando me envolvi no emaranhado de lençóis de flanela é que compreendi que tudo não passara de um pesadelo terrível. Afinal, estava no meu quarto, deitada na minha caminha, sozinha!. Só naquele momento é que fiquei verdadeiramente descansada. Virei-me para a parede, como sempre, aninhei-me, agarradinha à almofada, fechei os olhos e preparei-me para inventar mais uma das minhas historietas mirabulantes que me faziam dormir, repimpadinha.

Acordei pela terceira vez naquele dia. Já começava a ficar farta da sensação de déjà vu que parecia perseguir-me. O sol entrava através do cortinado. Finalmente uma manhã sem chuva, embora castigada por um frio de rachar. O resto da casa estava silenciosa, o que só podia significar uma de duas coisas, ou que não andava por ali ninguém ou que o único elemento da família, ainda presente àquela hora, lia descontraidamente o jornal, refastelado na sanita, indiferente ao cheiro, algo nauseabundo, que habitualmente o acompanhava naquela situação.

Olhei para o relógio-despertador em cima da mesa de cabeceira e já nem me atrevi a reagir quando vi que marcava 10 horas da manhã. Perdida por cem, perdida por mil, já que tinha faltado às duas primeiras aulas da Faculdade, decidi ser mais prudente e cómodo nem pôr lá os pés nesse dia. Tinha muito em que pensar e muito que fazer, embora não me lembrasse especificamente do quê. Antes de mais, ia ficar por ali a preguiçar mais uns minutos. Talvez me surgisse alguma coisa interessante.

O momento paradisíaco não durou muito, aliás, tinha acabado de me enroscar nos lençóis quando ouvi a campaínha da porta da rua. Achei melhor nem me mexer, na tentativa de fazer supôr, a quem quer que fosse, que não estava ninguém em casa. Fiquei na expectativa do segundo toque, como se estivesse no liceu. Nada aconteceu, para além do silêncio. Tinha de haver um segundo toque … . Havia sempre. Tentei abstrair-me da curiosidade crescente que me impedia de voltar aos meus sonhos fabricados. Não havia dúvida que o ser humano era um animal cujo espírito de curiosidade, para não dizer de coscuvilhice, era muito mais forte do que a necessidade de descanso e conforto.

Não valia a pena retomar a minha modorrice, já que não seria como há minutos atrás, totalmente descontraída. O meu cérebro começava a despertar e, de repente, fez-me sentir uma urgência incontrolável em regressar, o mais depressa possível, ao meu salão de confissões ilícitas e silenciosas. Aqueles seres, aparentemente humanos e reais, faziam-me falta, como se já fossem parte integrante da minha vida. Chegavam mesmo a preocupar-me. Tinha receio que algo de mal lhes acontecesse, devido a um desatenção minha.

Não podia continuar a preguiçar egoisticamente. Tinha de me activar. Sentia o mundo a passar lá fora, naquela rua sem saída, onde morava o Café.

A área de 15 metros quadrados que ocupava o meu quarto, longe de tudo e de todos, e que até àquele momento fora o meu refúgio seguro, onde passara os melhores e os piores minutos da vida, deixara de ser suficiente para albergar a loucura que me ia na alma, repleta de vidas e angústias alheias.
Tinha de sair dali, antes que a tentação de mais um dia a pairar sobre mim própria se tornasse mais forte do que a vontade de saber quem tocara à porta, uma única vez, e, sobretudo, o seguimento da vida daquelas pessoas do Salão de chá que aparentemente confiavam em mim. Eu sabia que, apesar de não aparentarem, e sem que eles próprios tivessem bem noção disso, todos eles esperavam por mim, com alguma ansiedade, como se lhes pudesse devolver a serenidade e a paz perdidas das suas vidas.

À medida que me vestia, ia-me sentido gradualmente mais impaciente. Creio que saí sem sequer me pentear, o que, na verdade, até era habitual em mim. Sempre odiara espelhos.

Mais uma vez, pirei-me de casa a correr, e desta vez atropelei mesmo o estupor do cão a pilhas do vizinho de baixo. O gajo era insuportável, passava os dias a dar beijinhos ruidosos àquele embirrante espécimen de quatro patas. Já sabia que à noite ia ter palestra da minha mãe sobre as regras de boa vizinhança.

Na rua, esbarrei com o carteiro gorduxo que todos os dias entregava a correspondência no nosso bairro. Deu-me os bons dias com o seu inalterável bom-humor e, após ter dito que já tinha ido à minha procura em casa, (já estava explicado o toque de campaínha matinal), estendeu-me um curioso envelope violeta que exalava um aroma delicioso a flores. Como seria de esperar, não se coibiu de lançar algumas piadinhas em relação àquela carta original e, sobretudo, tão rara por aquelas imediações.

Se bem que estivesse morta de curiosidade sobre o que estaria dentro do envelope, já que por fora não havia nenhuma identificação para além do meu nome e morada escritos numa letra que mais parecia um exercício de estilo, grunhi um adeus apressado ao simpático carteiro e afastei-me uns metros largos para abrir aquele envelope misterioso. Tentei não o danificar mais do que o estrictamente necessário, mas a ânsia foi mais forte do que eu e acabei por rasgá-lo à pressa. Do interior, extraí uma folha de papel simples, onde, com a mesma letra rebuscada do envelope, mas menos cuidada, estava uma única e simples frase: “Precisamos de si, com urgência. Imploro-lhe, venha depressa!”. Nenhuma assinatura perceptível, nem teria sido necessário, pois, não sei bem definir com exactidão porquê, tive, desde logo, a certeza que fora Beatriz a autora daquela missiva que se assemelhava a um urgente pedido de socorro.
A visão fugaz de uma bengala, esquecida algures, num lugar suspeito, cruzou a minha memória e despertou-me a atenção. E a ansiedade que já sentia, antes de receber a carta, deu lugar a um estado de aflição que não me ajudava nada a raciocinar.

Decidida a chegar ao Café, o mais rapidamente possível, e indiferente ao estado miserável das minhas finanças, enfiei-me no primeiro Táxi que me apareceu. Tive o azar de apanhar um dos mais antigos cujo condutor, além de ser tão velho ou mais do que o carro, tinha um pé excessivamente pesado e um mau-humor contagiante. Aguentei estoicamente os 10 minutos inteirinhos do trajecto, mas quando saí do Táxi no meu destino, não só estava preocupada e ansiosa, como, sobretudo, com um humor de cão.

Já a entrar na rua do Café, senti um vento gelado, acutilante, percorrer-me as costas. Arrepiei-me de tal forma que o meu cabelo parecia ter estado em contacto com um fio de alta tensão ou com a própria morte. Aconcheguei a roupa ao meu corpo, na medida do possível. Saíra tão à-pressa de casa que me esquecera de trazer um casaco. Acelerei o passo para chegar rapidamente ao Café, como se de mim dependesse a salvação do Mundo.

Finalmente cheguei à porta tão desejada do misterioso Café. Pela primeira vez, reparei que não tinha nenhuma janela para a rua, limitava-se a ter uma porta de vidro fosco, pouco comum para um mero estabelecimento comercial de rua. Entreabri a porta o suficiente para meter o nariz e espreitar, não fosse o Diabo tecê-las. Nem sabia bem o que receava ou o que esperava encontrar, talvez um cadáver. Na realidade a Violante andava desaparecida há já uns dias, mas, a verdade é que eu também lia demasiados livros policiais (de cordel, como dizia o simpático do meu irmão) e a minha imaginação era, a maioria das vezes, delirante. Lá dentro, tudo parecia milimetricamente no seu lugar. Aquilo fez-me lembrar a mulher a dias de casa dos meus pais que, embora limpasse sempre tudo impecavelmente, parecia não deslocar nada, tal a aparente imobilidade dos objectos, mesmo após a passagem do pano do pó.

Olhei para o último banco do balcão onde, no dia anterior, durante a minha retirada intempestiva do Salão, descortinara uma bengala que me parecera muito familiar. Aproximei-me, simultaneamente com medo de não a encontrar no mesmo lugar e esperançosa de chegar à conclusão que tudo não passara de uma alucinação.

Não vi a bengala. Preparava-me para suspirar de alívio quando me apercebi de uma marca reveladora, feita no generoso pó que cobria o chão naquela zona. Era uma marca redonda, do tamanho de uma moeda de 200 escudos. Bem podia ter sido provocada por outra coisa qualquer, mas observando melhor, encontrei vestígios de pegadas, consideravelmente recentes. As pegadas pertenciam a uma só pessoa e, a acreditar no meu detective preferido, Sherlock Holmes, a diferença entre a impressão deixada por um pé e pelo outro, dava a entender que resultava do andar de uma pessoa coxa. Joaquina!

Estava cada vez mais confusa, parei junto à suposta marca da bengala e não quis avançar mais, já com receio do que iria descobrir mais adiante.

Na verdade, estava a ser melodramática, provavelmente a velhota andara à procura de qualquer coisa e encostara-se ali para descansar. Encolhi os ombros, como quem sacode pensamentos dolorosos só de os imaginar. O resultado não foi brilhante, devo admitir, mas teve, no mínimo, o condão de me recordar a mensagem estranhíssima que recebera havia uma hora, à porta da minha casa familiar. Estava perdida nestes pensamentos quando, olhando distraidamente para trás do balcão, me pareceu ver um objecto a brilhar no meio da sujidade. Dei a volta ao balcão e pus-me de cócoras para o observar. Era um alfinete de pescoço. Lembrava-me de já o ter visto algures, só não conseguia recordar em que pescoço.

Cada vez mais baralhada pela profusão de desconfianças e incompreensões de tudo o que se estava a passar à minha volta, tive alguma dificuldade em chegar à porta de saída do mundo semi-real daquele Café e de entrada num espaço e tempo novos e consideravelmente irreais. Senti a porta contra as minhas mãos, mesmo antes de me aperceber da sua existência, bem à frente do meu generoso nariz. Empurrei-a com a determinação que ainda me restava, convencida que ia entrar tipo 007 ou Comissário Maigret e resolver todos os mistérios que pairavam no ar, colados às diversas vidas que por ali se iam arrastando.

Mais uma vez, a minha entrada foi totalmente ignorada. Ninguém parecia sequer ter dado pela minha chegada. Fiquei frustradíssima. O meu orgulho andava a sofrer demasiados reveses e não se conseguia habituar a isso.

Decidi provocar e enfrentar o olhar de cada um dos presentes, assim, avancei lentamente, de nariz bem empinado (a melhor defesa do mundo para o embaraço). A triste realidade foi a da minha pessoa permanecer transparente. Todos os presentes continuaram na mesma posição, a fazer as mesmas coisas desde que eu entrara, quer a conversar em surdina, quer simplesmente a beber um café ou um chá.

Receando fazer figura de parva, decidi encaminhar-me para a minha mesa habitual, partilhada com a miúda triste dos óculos. Quando cheguei ao pé da minha cadeira, sentei-me ruidosamente, em jeito de teste ou de chamada de atenção: “Allô, estou aqui, cheguei! Alguém me pediu para vir, quem ?”

A minha companheira de mesa não se mostrou impressionada com a minha chegada, limitou-se a fazer uma pequeníssima pausa nos movimentos frenéticos da esferográfica, mas nem olhou para mim, só esboçou um décimo de sorriso, sem desviar os olhos, um milímetro que fosse, da sua escrita.

Senti-me um bocado ridícula por ninguém se mostrar, minimamente, preocupada ou interessada na minha pessoa. Estudei, curiosa, o ambiente que me rodeava, na esperança que alguém me enviasse sorrateiramente um sinal de cumplicidade, mas todos se mostravam anormalmente fechados. Havia uma tensão estranha no ar. Não conseguia compreender o que provocara fluídos tão negativos, só sabia que estava a começar a sentir uma desagradável sensação de claustrofobia.

A rapariga à minha frente continuava perdida na sua escrita, excessivamente intensa, impassível e indiferente ao mundo envolvente. O homenzinho careca, novamente alinhado e impecável, apresentava umas olheiras arrocheadas e os olhos raiados de sangue de quem não dormira e estivera sujeito a uma enorme quantidade de angústias. Mexia nervosamente na aliança, rodando-a no dedo, como se a usasse pela primeira vez na vida e se sentisse incomodado pela presença daquele objecto estranho em contacto constante e obrigatório com a pele. O casal sui-generis que eu conhecera de mãos permanentemente entrelaçadas e olhares intensos trocados numa comunicação telepática, inacessível ao comum dos mortais, ignorava-se mutuamente, aliás, parecia nem se conhecer. O Salão mais parecia uma sala de espera de um Hospital, só faltava os ais e os susurros críticos dirigidos ao foleiro sistema de saúde do país.

Estava prestes a atingir os meus limites de tolerância ambiental, até as plantas pareciam encolhidas, receosas de lançar os seus aromas tão agradáveis e relaxantes. A luz estava mortiça e os empregados, sempre tão elegantes e activos, pareciam curvados, arrastando-se por entre as mesas, sem brilho. Dir-se-ia que, enquanto lá fora se tinham escoado apenas 24 horas, correspondentes a um único dia, ali dentro, o tempo, anteriormente suspenso, esgotara vários anos de uma só vez.

Com certeza, tinha havido um engano na entrega da missiva aromática ou então, fora uma brincadeira de mau-gosto dos meus queridos colegas da Universidade. Fosse como fosse, não conseguia continuar ali sentada, a assistir à decadência de um local tão especial, embora estranhíssimo, como aquele. Tinha chegado no dia errado ou, simplesmente, em má-hora. Decidi ir-me embora e voltar mais tarde ou, talvez até, no dia seguinte. Assim, ainda podia ir estudar alguma coisinha. Gente estranha por gente estranha, mais valia a companhia do extraterrestre do meu irmão, pelo menos era essa a sua fama lá pelo bairro.

Levantei-me, não sem um bocado de tristeza e ressentimento, e preparava-me para me pirar, quando a porta se abriu e entraram, causando algum mau-estar adicional, duas personagens já conhecidas. A Joaquina, embora coxeando, apoiava-se à sua bengala, majestosa e inatingível, sem olhar para ninguém, fixando unicamente um ponto à sua frente, invisível, algures no Salão. E a Beatriz que no primeiro dia parecia ser quem comandava as hostes e naquele momento seguia cabisbaixa, dando uma imagem de fragilidade inacreditável. Passaram ambas à frente da minha mesa, sem que nenhuma das duas desse mostras de me reconhecer. A Beatriz ainda pareceu desequilibrar-se discretamente, mesmo junto da minha cadeira, mas nem tive bem a certeza se não teria sido a minha imaginação a pregar-me, mais uma vez, uma partida. Tentei alcançá-la com as mãos, de forma a ampará-la, mas rapidamente se refez do invisível precalço e logo se endireitou, lançando um minúsculo olhar, onde transparecia receio, para não dizer pavor. Continuou obediente, na sua posição dentro da procissão, tentando ignorar-me.

Se até aquele momento me sentira confusa e perdida, após aquele singelo incidente, fiquei a achar que ou era eu que estava a elouquecer definitivamente ou eram os outros que me rodeavam que tinham decidido dar-me cabo da paciência e do juízo, só para passarem um tempo que, para eles, mais parecia não existir nem ter importância.

A irritação nasceu na base do meu estômago e começou a ganhar terreno, gradualmente, até se reflectir na cara a escaldar, suponho que a dada altura até já deitava fumo pelo nariz e pelas orelhas. Contudo, e apesar daquelas mal contidas manifestações de fúria, a minha presença permanecia indiferente para aquela gente.
Ao atingir o climax da frustração, levantei-me tão repentinamente que a cadeira caiu ruidosamente no chão, só que aparentemente fui a única a sobressaltar-me com o estrondo que causei. Todos os meus vizinhos continuaram, impávidos e serenos, embrenhados nas suas vidinhas. Pelo menos, o barulho teve o condão de me descontrair.

Quando retomei a intenção de me dirigir à mesa das duas velhotas, já estava mais calma. Enchi-me de coragem e lá fui eu toda lampeira, na esperança de, finalmente, compreender o que se passara com a Violante, visto que já não a via desde o primeiro dia. A alteração de postura das duas velhotas era, no mínimo, preocupante. Dir-se-ia que tinham trocado peles, a Beatriz que, num primeiro contacto, tinha parecido ser a mais forte e a mais senhora de si, surgia agora inibida e assustada, enquanto que a Joaquina que, no primeiro dia, me deixara uma imagem de timidez e vulnerabilidade, aparentava naquele dia, determinação e segurança, já para não referir o olhar cinzento, duro e frio, com que me observou, fugaz.

Quando dei, finalmente, os derradeiros passos para alcançar a mesa das duas velhotas, já ambas estavam sentadas imóveis, sem a troca de uma palavra. A Joaquina observava-me através do grande espelho pendurado mesmo à frente do seu nariz. Nem se dignou dar mostras de me reconhecer, no entanto, continuou a observar-me com a maior das descontracções. Esbocei-lhe um décimo de sorriso, não fosse dar-se o caso de não me ter reconhecido de imediato. Esforço inútil, pois continuou a ignorar-me, naturalmente, sem o mínimo vestígio de desconforto.

Por seu lado, a Beatriz, apesar de tentar disfarçar, não conseguiu evitar uma recepção simpática e calorosa. Assim, recebi dois beijos rápidos e um aperto no braço esquerdo, através do qual tive a oportunidade de confirmar que fora ela a enviar-me a cheirosa missiva S.O.S.

- Já não falávamos há uns dias… - disse ela, à guisa de saudação.

- É verdade, a minha vida tem sido uma loucura, nem eu própria a consigo compreender.

E ali ficámos as duas a olhar uma para a outra, conscientes da presença de uma barreira ao nosso diálogo.

Como achei que já não tinha mais nada a perder, decidi que tinha o direito de saber o que raio acontecera à simpática e desinibida Violante.

- Afinal, o que é que aconteceu à Violante?. Nunca mais a vi, depois do primeiro dia em que entrei no Salão… .

Se o clima em redor daquela mesa já estava algo tenso e inóspito, após esta pergunta o mal-estar tornou-se uma presença tão pesada que quase o conseguia ver pairar sobre nós.

A Beatriz ficou branca como cal e com os olhos marejados de lágrimas. Fixou, automaticamente, a Joaqina, para logo desviar o olhar, talvez por sentir que o olhar a traira por breves momentos.

A Joaquina dignou-se rodar ligeiramente a cabeça, de forma a conseguir visualizar a minha cara, tudo isto com um sorriso de triunfo nos lábios, embora as suas mãos, ambas apoiadas na bengala, tremessem imperceptivelmente.

De repente, um sinalzinho na minha memória fez-me recordar três imagens, a primeira de uma bengala, igualzinha à da Joaquina, esquecida no Café, ao fim do dia. A segunda, a marca redonda, bem visível, deixada na poeira do chão do Café, no local mais recôndito, junto do último banco alto do balcão. E, por último, o valioso alfinete, que tinha bem guardado na minha mão.

- A Violante nunca mais nos importunará com as suas palermices. Está morta, e
com ela está, também, morto o passado. – Afirmou a Joaquina, com uma frieza que me chocou. E tinham elas sido as melhores amigas... .

Olhei para a Beatriz, os seus olhos pareciam ter duplicado de tamanho, tal a estupefacção que a sua cara revelava. Apesar da indignação e das lágrimas que lhe escorregavam pela cara abaixo, ainda conseguiu ripostar, muito ofendida:

- Devias ter vergonha de falar assim da Violante. No final, ela não te fez mal nenhum. – O tom agressivo ia subindo de escalão. – Aliás, tenho quase a certeza que se houve alguém que fez mal a alguém foste tu única e exclusivamente!

- Não sejas parva, eu nunca teria coragem de maltratar a Violante, apesar de ter sido ela a arruinar-me as recordações do António, se bem te recordas. Naquele dia à noite, como tu bem sabes, limitei-me a dizer-lhe o que pensava dela e de toda a sua vida fútil. – Defendeu-se a Joaquina, com o ar mais sereno do mundo.

- Tu é que a leváste ao suicídio, com as tuas palavras brutais, com o teu eterno espírito crítico e depreciativo em relação a tudo e a todos. Consideras-te superior ao comum dos humanos e, na verdade, não passas de uma mulher amargurada e infeliz. – replicou a Beatriz, elevando a voz e levantando-se da cadeira, parecendo perigosamente exaltada.

Naquele momento, cheguei a recear que as duas se fossem engalfinhar, embora tal postura não se coadunasse, por aí além, com duas senhoras de tão boa pinta como aquelas duas.

Mas, inesperadamente, a Beatriz calou-se e deixou-se cair pesadamente na cadeira, como se desistisse de tudo. E assim ficou, sem mais nenhuma palavra, a olhar o vago, sem o mínimo sinal de vida.

Passou-se bem um minuto de silêncio total e absoluto. A música, que sempre envolvia o Salão, deixara de se ouvir. O vai e vem permanente dos criados de mesa cessara, como que por magia. O próprio tempo parecia ter parado naquele espaço cada vez mais estranho.

Depois, sem aviso prévio, e sem que para tal tenha havido uma razão evidente, tudo e todos foram retomando as suas posturas habituais, a música, retomou a sua sonoridade envolvente, (continuava sem saber de onde provinha aquela música, aliás já perdera a esperança de algum dia vir a saber), os empregados recuperaram o andar deslizante e silencioso por entre as mesas do Salão e o rumor das conversas vizinhas renasceu.

Mas nós as três ali continuámos na mesma posição, a Joaquina sentada descontraidamente, observando o movimento do Salão, através do enorme espelho, incrustrado na parede, mesmo à sua frente. A Beatriz permanecia sentada, sem qualquer esboço de energia, enquanto que eu tentava vencer o choque em que caíra, após ter tomado conhecimento do suicídio da Violante e do empurrãozinho dado pela sua suposta amiga de infância para a ajudar nessa decisão tão trágica e infeliz. E eu que chegara a desconfiar da Joaquina, não como mera impulsionadora do acto, mas mesmo como entidade criminosa responsável pela morte da Violante... .

Voltei-me para a Beatriz e perguntei-lhe como é que a Violante tinha morrido. Ela demorou algum tempo até conseguir dominar as lágrimas e depois respondeu-me, ainda a custo e com a voz trémula:

- Tomou comprimidos para dormir e adormeceu para todo o sempre, sem se ter apercebido do que lhe estava a contecer… . Fui eu a encontrá-la, no seu quarto, sentada à sua escrivaninha. A sua cabeça repousava no braço esquerdo, como quem adormece de cansaço, a meio de uma leitura fastidiosa, Na mão direita, ainda se encontrava a caneta com que escrevera. Os seus cabelos prateados escondiam a folha de papel branco em que estivera a escrever. Só passado algum tempo, depois de a ter deitado na cama, é que reparei na fotografia que caira ao lado da cadeira onde vivera os seus últimos suspiros de vida. Reconheci o António, o marido da Joaquina. Por trás uma só frase – Até que a morte nos una para sempre – assinado A.R.. Guardei a fotografia no bolso do meu casaco de malha, para que mais ninguém a visse… . – Durante um momento teve de parar de falar, pois as lágrimas não lhe permitiam a saída das palavras. – Depois, lembrei-me da folha de papel escrita, em cima do tampo da escrivaninha. A sua letra era descuidada e impulsiva. A carta estava dirigida a si…, assim como a fotografia era para você a guardar… .

Abri os olhos, estupefacta, sem querer acreditar no que estava a ouvir. Uma carta e uma fotografia para mim, pensei com os meus botões. Estava ansiosa por lê-la. Aliás, foi o que fiz com excessiva sofreguidão logo que tive o papel na minha mão:




“Minha Querida,

Com certeza irá estranhar o facto de receber uma carta minha e, sobretudo, nas circunstâncias em que a vai ler. Nesta altura já devo estar com uns palmos de terra por cima, o que não deixa de ser deprimente.

Sempre amei a vida e sempre tentei divertir-me o máximo possível, espero que você faça o mesmo, depois de se encontrar por aí. Talvez esteja enganada, mas senti-a um bocado perdida dentro de si própria, não me pergunte porquê, até porque não vou ser capaz de lhe responder, como deve calcular. Tenho fé que se vai conseguir descobrir algures dentro desse Salão, todo esse espaço transpira personalidade e emoção…, quem sabe se não lhe pertencem.

Provavelmente espanto-a com o meu monólogo intelectualizado. Sabe, sempre sofri pelo facto de ser loira e ter os olhos azúis, como se fosse uma marca de estupidez intrinsecamente agarrada ao meu corpo. Mas, confesso, que bem me aproveitei do efeito que causava nas pessoas e, principalmente, nos homens, de tal forma que acabei por me esquecer que até sabia pensar com alguma profundidade.

Ainda não compreendi bem porque lhe estou a escrever, talvez por me ter revisto um pouco em si, você é muito bonita, apesar desse nariz que, vendo bem e depois de nos habituarmos, até lhe dá um toque de charme. Também eu andei perdida por volta dessa idade.. . Ainda hoje não tenho a total certeza se acabei por me encontrar.

Naquele dia original em que as duas nos conhecemos, tinha acabado de decidir que a minha hora de felicidade estava a chegar. Quando a vi, foi como se me visse a mim própria há uns bonitos anos atrás. Não sei porquê, mas isso deu-me paz interior e reconciliou-me, finalmente, com a vida. A partir daquele dia comecei a preparar-me para a viagem-surpresa que me aguardava, até hoje. Depois de falar prolongadamente com a Joaquina, decidi antecipar o desenrolar dos inevitáveis acontecimentos. Para ela vai ser um alívio deixar de me ver todos os dias e de recordar, obrigatoriamente, a traição do marido. Para mim, confesso que tenho esperanças de ir ter com ele, onde quer que ele esteja à minha espera. E quanto mais depressa melhor. Desde que ele morreu que a minha vida deixou de fazer qualquer sentido. Desde o dia em que nos conhecemos que nunca conseguimos deixar de nos desejar com excessiva intensidade. Já não aguento mais viver cá na terra sem ele e com a minha consciência a corroer-me sempre que vejo a Joaquina com aquele seu ar de mulher séria indignada.

O António nunca foi homem para ela, se tivéssemos tido a sorte de nos conhecer uns anos mais cedo, teriamos feito furor, nem que fosse pelo facto de sermos completamente destravados e felizes.

De há uns dias para cá, a necessidade premente de o revêr tem vindo a crescer dentro de mim, violentamente. Foi como se você me tivesse transmitido umas ondas de lucidez e loucura em simultâneo. Seja como fôr, agora vou mesmo à minha vida cósmica ou melhor, à minha tardia morte terreno. Estou ansiosa e confiante.

Adeus e Obrigada.

Violante”


Durante muito tempo para ali fiquei, com as folhas de papel numa mão e a fotografia na outra. Observei melhor a carta, à procura de sinais de desespero ou pânico, mas tudo o que vi foi uma escrita serena, apaixonada e sem pressas. Tentei, em vão, encontrar uma pista sobre o que, na realidade, levara a Violante a um acto tão violento, assim de repente, mas daquela carta só transparecia emoção. Continuei com a fotografia na mão, sem coragem de olhar para ela, com um medo incompreensível do que iria ver e sentir. Sempre sem olhar, guardei a fotografia junto ao peito, no bolso da camisa de flanela.

Passado um longo instante, sentei-me na terceira cadeira, a que pertencera à Violante e que se encontrava livre. De repente, senti-me profundamente cansada, sem já saber o que estava para ali a fazer, entre aquelas pessoas que conhecera havia tão pouco tempo, mas que, inesperadamente, se tinham apoderado de praticamente todos os segundos do meu dia a dia, inclusivamente dos meus sonhos e pesadelos.

Continuei presa aos meus pensamentos, sem conseguir estabelecer ligação com a Terra. Os sons chegavam-me vindos do além, deformados. Sentia a cabeça instável em cima do pescoço, alternando entre o peso butal do chumbo e a leveza estonteante de uma pena. Fosse como fosse, o meu cofre de ideias ameaçava cair a todo o momento.

Ouvi, muito vagamente, o adeus da Beatriz e, apesar de ter a certeza de que nunca mais a voltaria a ver, não fui capaz de pronunciar uma única palavra, nem de esboçar qualquer tipo de gesto. Limitei-me a olhar para ela, como quem não vê, até deixar de a conseguir fixar. Apercebi-me tenuemente da saída de algumas pessoas, mas só despertei do torpor em que caira quando senti uma pancada seca nas costas da minha cadeira. Ainda tive energia suficiente para me conseguir virar a tempo de ver a Joaquina, apoiada, elegantemente, à sua bengala, a sair do Salão, sem um olhar, e fechar a porta, sem o mais leve ruído. Senti o alfinete na minha mão, apertei-o, como que a certificar-me que estava acordada, e o resultado foi uma picada na palma da mão que me arrancou um pequeno grito de dor. Olhei para a porta fechada do Salão e disse um adeus silencioso às duas mulheres que tinham acabdo de sair da minha vida. Até nunca mais.

Dei por mim completamente sozinha no Salão, sem saber o que fazer e, muito menos, para onde ir. Já nem tinha bem a certeza onde pertencia, onde morava. No limite, começava a sentir-me perdida dentro de mim própria. Só queria conseguir silenciar as mil e mais uma vozes que me toldavam o pensamento. Era tal a balbúrdia no interior da minha cabeça que nem era capaz de aceder aos meus próprios pensamentos.

Quando comecei a voltar a mim, reparei que tinha regressado à minha mesa e estava sentadinha na cadeira habitual, embora não conseguisse descortinar como lá tinha ido parar. Pelo menos, sabia que já não estava ali a fazer nada, mas o aroma adocicado, mais evidente do que nunca, entrava-me pelas narinas, como uma droga paralisante e a música pregava-me teimosamente ao assento.

Senti um ardor e uma comichão incontrolável da bochecha direita. Esfreguei violentamente a cara e espantou-me sentir nas mãos a humidade das lágrimas que me escorriam, pungentes, cara abaixo. Nem conseguia atingir a explicação para aquelas lágrimas extemporâneas. Talvez fossem dedicadas à Beatriz, por estar cheia de pena dela ou talvez estivesse com pena de mim própria.

Levantei-me, resoluta, e pus-me a andar dali para fora. Quando entrei no Café reparei que a luz ainda entrava pelos vidros da porta, fiquei mais descansada ao pensar que se me apressasse, ainda chegava a casa a horas decentes de jantar em família. Aquilo lá por minha casa não andava famoso. Mesmo o meu pai que vivia na sua biblioteca, enfronhado nas suas pesquisas sobre moedas antigas, não reagiria lá muito bem se soubesse que a sua filhinha dormira uma noite fora de casa.

Saí para a rua. Estava um frio danado. Aconcheguei o casaco contra o peito, enterrei o barrete de lã na cabeça e segui o meu caminho. Ao reparar na ausência de pessoas e trânsito nas ruas comecei a achar que alguma coisa não batia certo. Olhei para o céu. O Sol não estava onde era suposto estar num fim de dia normal. Não tinha relógio para confirmar a hora real e não andava por ali vivalma que me pudesse ajudar. Apressei o passo, desconfiada que algo não estava a correr como eu esperava, mas ainda com uma vaga esperança de aquela ser uma rua original, sem nenhuma casa de habitação, nem empresa, nem estabelecimento comercial. Desci as escadas do Metro e finalmente consegui confirmar que não só não estávamos ao fim da tarde, como se limitava a ser 8 horas da manhã de um sábado radioso, mas gelado.

Bolas, estava lixada, o meu pai ia esfolar-me viva, já não pensando na indignação chorosa da minha mãe e no sorrizinho sardónico do meu adorado irmão.

A meio do percurso ainda tinha dificuldade em acreditar que as pessoas de cara fechada e postura cansada que seguiam comigo na carruagem, ainda iam a caminho de mais um dia de trabalho, e logo um sábado, em vez de estarem a regressar a casa, após um dia estafante.

Perdida entre estes pensamentos e o sono que começava a vencer cada um dos meus sentidos, quase que ia falhando a minha saída. Aliás, até ia ficando presa na porta da carruagem do metro quando me levantei à pressa do assento e me lancei, que nem uma louca, para a porta que já começara a fechar-se.

Ainda com o coração aos pulos, e furiosa comigo própria devido àquele esforço evitável, atingi o cimo das escadas e a saída para a rua. A manhã começava a ganhar a azáfama característica de um acordar de sábado. O trânsito já era intenso e o vai e vem das pessoas adensava-se.

A minha rua estava, como sempre, relativamente calma, visto que também dava para uma praceta sem saída. No entanto, os meus vizinhos dirigiam-se já para os seus carros ou para os transportes públicos, conforme iam para o seu jogging matinal ou para os empregos habituais. Nenhum deles me viu e eu também não os quis ver, até porque,a bem dizer, nem sequer os conhecia.

Tentei encontrar o carro dos meus pais, na esperança de não o ver, mas como ambos já estavam reformados, o mais natural seria estar a minha mãe a preparar estoicamente o substancial pequeno-almoço para os seus meninos-prodígio, a excelência meu pai e a excelência meu irmão.

Antes de transpôr a porta da rua, espreitei cautelosamente, não fosse o palerma do cão a pilhas do vizinho obeso andar por ali, a cheirar e a marcar território. Não vi vivalma, pelo que subi as escadas e meti a chave na porta, o mais suave e silenciosamente que podia. Pelo menos, foi o que pensei, na altura. Tinha-me esquecido da existência do meu sorrateiro e espertinho irmão mais velho. Para mo recordar estava ali ele, em pessoa, encostado à parede do corredor, a tirar macacos do nariz, impávido e sereno, à minha espera. Suspirei audivelmente, já a divinhar o drama que se seguiria à sua saudação propositadamente ruidosa.

No entanto, o queixo só não me caiu por estar bem preso à cara quando reparei que me exigia silêncio e apontava na direcção do meu quarto. Embora estarrecida, aproveitei a deixa, sem uma palavra, não fosse ele arrepender-se. E de ténis na mão, já que os tirara antes de meter a chave à porta, corri e enfiei-me no meu quarto. Tranquei a porta mesmo na hora H. Ainda ouvi a minha mãe chamar-me para o pequeno-almoço, com a sua voz estridente e o habitual resmungar do meu pai perante o meu silêncio.

O último som que ouvi naquele dia foi a voz do meu irmão que secundou uns toques ruidosos na porta do meu quarto:

- Ela ainda está a dormir, deve ter estado a estudar durante toda a noite… .

Tinha acabado de me deitar em cima da cama e de enterrar a cara na almofada. Nunca iria compreender aquele meu irmão.

No instante seguinte senti-me afundar para dentro de alguém que podia muito bem ser eu própria e creio que adormeci imediatamente. Sem hipótese se retorno.
















SEXTO DIA



Já várias vezes senti a vontade de adormecer e nunca mais acordar. Vezes de mais. Naquelas alturas piores da vida, em que tudo parece estar desencaixado da realidade. Mas, infelizmente, o acto de dormir só é bom quando se toma consciência da sua existência, logo, para isso, torna-se essencial acordar. Não é o mesmo que fazer amor, nessas alturas bem podia morrer durante o acto, porque o prazer já estava no papo.

Na realidade, o bom do dormir está na capacidade incrível de sonhar. Até os pesadelos são suportáveis, quanto mais não seja pelo alívio que permitem quando acordo. Acabam sempre por me dar a sensação de felicidade por estar viva. No fundo, tudo na vida acaba por desembocar num sonho, bom ou mau, consoante a sorte disponível na altura.

Toda esta dissertação interior, sem nexo, se processou durante o curto período em que estive enroscada na minha cama e agarrada a minha adorada almofada, a curtir aquele momento que medeia entre a realidade e o sonho.

Aquela minha relação com a almofada tinha algo de preocupante e erótico. Fartava-me de acordar aos beijos à almofada, e que frustração sempre que chegava à triste conclusão que todo o furor era dirigido e aproveitado por um simples e desinteressante objecto.

Após uma luta prolongada entre mim e o meu subconsciente, em que eu não queria, nem por nada, regressar ao mundo real e o meu subconsciente insistia em me espicaçar a vontade de acordar para mais um confronto violento com a vida exterior e interior, tentei reagir, em vão. Ainda permaneci uns cinco minutos envolvida naquele braço de ferro, até que o subconsciente cedeu, não sei se à exaustão da mente ou à saturação do corpito.

Acabei por conseguir entreabrir o olho direito, para me certificar, mais uma vez, de que me encontrava mesmo no meu quarto. A verdade é que ultimamente a minha vida entrara numa montanha russa, cheia de contra-curvas e loopings inesperados e eu acabava por nunca saber bem em que pé é que andava.

Desta vez, obtive a confirmação que, não só estava na minha cama, como ainda era noite profunda, daí o silêncio que me envolvia.

Voltei a cair num sono pesado, desta vez sem contornos definidos, nem sensações terrenas. Foi como se tivesse entrado num túnel sem fim. Há quem diga que é assim que se processa a primeira abordagem da morte, através de um túnel, sem fundo. Mesmo assim, fui planando pelos ares do subconsciente, enquanto me sentia em queda livre, a caminho do desconhecido, do infinito ou, talvez, do nada.

Não tive noção de quantas horas demorei a completar o meu percurso, aliás nem nunca o vou saber, dado que não consigo recordar-me de mais nenhuma imagem onírica daquela noite. Tudo acabou numa sensação de branco e, a partir daí, mais nada ficou registado na minha memória, pelo menos na base de dados da memória a que me permito ter acesso.

Quando ressuscitei para a vida terrena, imediatamente cheguei à desgraçada conclusão que estava com dores espalhadas por todo o corpo, desde as unhas dos pés à ponta das orelhas. Também compreendi com a mesma rapidez a que se devia tal incómodo, bastou-me olhar para o relógio fatídico da mesa-de-cabeceira que, além das horas, mostrava o dia da semana, o mês e o ano. Eram sete horas da manhã, e o dia da semana deixara de ser sábado para dar lugar a um domingo inevitável. Significava que tinha dormido cerca de vinte e quatro horas seguidinhas, sem interrupções aparentes. E daí, talvez tivesse havido umas duas ou três idas sonâmbulas à casa-de-banho.

Sete horas era uma hora excelente para acordar a um domingo na minha casa. Significava que a casa-de-banho ainda estava, com certeza, livre. A minha malta lá por casa acordava um bocado mais tarde ao domingo. Mais correctamente, por uma questão de princípio de vida, ao domingo não se levantavam da cama antes das nove horas, mas apostava em como os meus pais já estavam ambos acordados, a ler ou a olhar para o tecto e o meu irmão a dedilhar o seu computador. Era curioso como todos respeitavem aquele género de ritual dominical e ninguém punha o pé fora do respectivo quarto antes das 9 horas da manhã, hora em que pontualmente passava o padeiro para deixar o pão dentro do bonito saco de pano que a minha mãe colocara no batente de fora da nossa porta de entrada.

Levantei-me devagar da cama, não fosse o chão fugir-me por debaixo dos pés novamente e, pé ante pé, encaminhei-me para a casa-de-banho. Tal como previra, estava vazia, livre de ocupantes e de cheiros maliciosos. Tomei um duche razoavelmente prolongado, de forma a desincrustar a sujidade, mas suficientemente moderado para não suscitar reparos da minha mães referentes ao desperdício da água do planeta.

Olhei para o espelho e não gostei lá muito da cara que vi reflectida a observar-me. Não estava com um ar lá muito saudável, emagrecera uns quilos, de certeza. Aliás, bastou-me ir buscar a balança que estava dentro da banheira e que, actualmente, quase nunca era utilizada.

Quando, por fim, lá me pesei, verifiquei que perdera 5 quilitos, de repente, sem que me tivesse apercebido. A verdade é que não conseguia lembrar-me de quando é que tinha comido a última refeição decente, ultimamente só me recordava dos cafés e das raras “sandwiches”, engolidas à pressa. Andava a descurar a minha própria pessoa à custa de passar os dias, e a maior parte das noites, a correr atrás de vidas que aparentemente nada tinha a ver comigo, nem de mim faziam parte.

Fui salva pelo vapor de água, resultante do duche, que começou lentamente a embaciar o espelho e a impedir-me de conseguir vislumbrar a minha cara reflectida. Detestava espelhos. Até parecia ter sido de propósito, na chamada “hora H”. Imediatamente sacudi a cabeça, não para ajeitar o cabelo, mas sobretudo para me livrar de pensamentos fastidiosos que não me ajudavam em nada e muito menos a sentir-me melhor comigo própria.

Ainda dentro da casa-de-banho, executei alguns passos de dança vigorosos, como era o meu costume sempre que terminava o duche frio. Cheguei à conclusão que o descanso daquela noite não fora o suficiente. Ao fim de 5 míseros minutos de imitação rasca da jovem Tina Turner já deitava os bofes pela boca. Estava partida, pelo que desisti de armar em vedeta de rock e passei à fase seguinte, pentear a trunfa e voltar ao quarto para decidir o que fazer com o meu domingo. Pus rapidamente em prática a minha estruturação dos minutos seguintes.

Já no quarto, hesitei entre o computador, ameaçador, que me esperava em cima da escrivaninha, onde se amontoava uma série de dossiers e livros pacientemente aguardando a minha atenção e exploração e a roupa da véspera, amontoada em cima de uma cadeira, no meio da qual estava um casaco de malha com um bolso onde se escondia a fotografia, para a qual não tivera coragem, até àquele instante, de olhar. Que estupidez de insegurança e perigo que não me deixava arriscar virar a fotografia e apreciar a cara ou as caras nela retratadas.

Mas, no fundo de mim, algo me dizia que ainda não era chegado o momento para o fazer.

Comecei a vestir-me, devagar, de forma a demorar algum tempo na operação, tempo suficiente que me permitisse inventar uma historieta simples, mas credível, para enfiar aos meu progenitores, caso desse de caras com eles antes de sair de casa.

Depois de estar arranjada e com os dentes bem lavados, sacudi a cabeça, desta vez na esperança de conferir um pouco mais de volume aos farrapos lisinhos que me emolduravam a cara. Uma derradeira e rápida consulta ao espelho certificou-me que estava apresentável.

Olhei uma derradeira vez para a mesa, em cima da qual jazia todo o meu curso de História de Arte empilhado, à espera de melhores dias e, com algum sentimento de culpa, abri a porta do quarto e saí.

Tal como desconfiara, ainda não se via nenhum dos “meus” a vaguear pela casa e o único barulho provinha da marquise, onde os dois barulhentos periquitos palravam insistentemente, aliás para ser rigorosa, a verdade é que nehum deles se calava nunca.

Enfim, mas voltando à “Casa Partida”, pé ante pé lá me fui encaminhando para a porta da rua. Nesse árduo caminho tive obrigatoriamente de passar pela porta do quarto do meu irmão. Curiosa e coscuvilheira, encostei o ouvido à porta, como o silêncio era absoluto, aventurei-me a espreitar pelo buraco da fechadura. Demorei um bocado de tempo até compreender o que raio estava o tipo a fazer de pernas para o ar e pescoço dobrado, com o queixo a descansar assente no peito. Por momentos pensei que ele tinha elouquecido de vez, mas depois lembrei-me que ele era um fanático praticante de ioga. Apesar de tudo, fiquei mais descansada.

Consegui chegar à porta da rua, sem me denunciar e pirei-me o mais rápido que me foi possível, sem fazer grande estardalhaço.

Já na rua, constatei que o tempo estava bastante agradável, pelo que decidi dar uma volta a pé ou, sendo mais sincera comigo própria, decidi ir a pé até ao Café. A curiosidade era mais forte do que a racionalidade, estava mais do que visto.

À medida que me ia aproximando do meu destino fui-me recordando de todas as vidas que atravessara naqueles poucos dias, desde que entrara pela primeira vez no exótico Salão de chá. Embora soubesse que aquelas vidas pertenciam a outras pessoas, limitando-se a cruzarem-se com a minha, alguma coisa me incomodava e parecia não estar a bater certo. Só que não conseguia compreender o quê.

Ao chegar já muito perto da rua sem saída do Café, comecei a ouvir muito barulho. Nem queria acreditar no que o som me fazia recordar. Estuguei o passo, ansiosa, e quando dobrei a última esquina ia caindo para o lado com o espanto que me provocou o espectáculo que se deparou à minha frente. Uma feira!

Aquilo agora é que não estava, nem de perto, nem de longe,na minha capacidade de imaginativa. A azáfama era mais do que muita, mas o mais curioso é que as únicas coisas que aparentemente constituiam objecto de venda nas bancadas montadas eram antiguidades, velharias. Fosse como fosse, havia imensa gente a ver e a comprar, desde roupas antigas e com certeza usadas, a peças de metal ou de porcelana aparentemente com algum valor, nem que fosse pelo aspecto que evidenciavam, velhas e sujas, como convinha.

Só me interrogava de onde tinha surgido aquela gente toda, quer comerciantes, quer compradores. Os prédios à volta continuavam silenciosos e fechados, nenhuma janela se abrira, nem nenhuma cara curiosa ou incomodada pelo barulho, assomara aos vidros. Pareciam figurantes de um filme. Ainda olhei em volta, na expectativa de encontrar o aparato que sempre envolve a produção e realização de um filme, mas não vislumbrei o mínimo indicativo. Acabei por concluir que, sendo o primeiro domingo que ali vinha, aquela azáfama era perfeitamente normal e habitual aos domingos.

Passeei um pouco por entre as bancadas, à procura de eventuais alfarrabistas, mas não encontrei sinal de livros. E como velharias não era propriamente o que mais me interessava na vida, optei por tentar encontrar a entrada do Café no meio da confusão que se instalara no passeio. Aliás, estava ansiosa por ver quantas pessoas teriam entrado lá por engano, pensando que podiam ali tomar uma café ou beber uma cerveja fresca.

Se a feira de rua me espantara, o que vi quando cheguei à porta do café ia-me fazendo cair de costas. Pessoas entravam e saiam do Café, não com o ar frustrado que, à partida, devia suscitar um Café fechado, mas todas lampeiras e pior (ou melhor) com bolos nas mãos, acabados de comprar, e garrafas de água e de cerveja. Até pensei que me tinha enganado na porta. Fui até lá. Ninguém olhou para mim quando entrei, nem tão pouco quando circulei no interior do Café, com um ar aparvalhado.

Depois de conseguir refazer-me do espanto, comecei a achar estranho ninguém dar ar de, sequer, notar a minha presença. O movimento no balcão era intenso, as prateleiras por detrás dos empregados estavam cheias de garrafas de todas as marcas e com todo o género de bebidas que se desejasse, uma máquina de café, bolos, sandwiches variadas, tudo o que se possa imaginar normal encontrar num Café, tipo snack-bar. Não havia mesas, nem sítio onde se sentar, para além dos bancos altos, em fila, ao longo do balcão. Tudo parecia excessivamente real e, contudo, alguma coisa parecia mal ou, pura e simplesmente, fora do sítio. De repente, percebi que o que estava a faltar era o barulho correspondente àquela total confusão de gente. As pessoas falavam entre si, animadamente, riam-se, andavam de um lado para o outro, mas eu não as conseguia ouvir, para mim reinava o silêncio do costume, como se aquele espaço estivesse vazio. O único barulho que se fazia ouvir era o que vinha da rua, cada vez que a porta se abria, para dar entrada ou saída a algum cliente.

Comecei a sentir-me zonza com toda aquela irrealidade, no meio de toda aquela loucura. Esfreguei os olhos com as mão, na esperança de estar a ter visões temporárias. Tapei os ouvidos para ver se conseguia distinguir o funcionamento interno do meu corpo, confirmar se estava ou não surda ou, ainda, se entrara noutra dimensão. Por fim, como último recurso e em desespero de causa, abri a goela e gritei, com quanta força tinha nos pulmões. Mas tudo continuou na mesma. Ninguém me ouviu, tal como ninguém me via. Ou era eu que, de facto, não existia ou eram os outros que se deslocavam num tempo completamente diferente do meu. Começava a convencer-me que, sem saber como, tinha adquirido a capacidade de viajar no tempo, na mesma altura em que tinha adquirido a capacidade telepática de ler e ouvir os pensamentos das pessoas que me rodeavam. A única coisa que me incomodava era não saber como controlar essas, aparentes, viagens temporais, nem como deixar de ouvir o que os outros pensavam. Tudo aquilo se estava a tornar muito cansativo para uma pessoa só.
Procurei a porta de acesso ao Salão, convencida que também esse local de peregrinação devia ter sido descoberto e invadido por aquela gente comum.

A porta estava entreaberta, convidativa, para quem reparasse nela. Aproximei-me lentamente e espreitei. Estranhamente, tudo parecia estar como sempre. O ambiente calmo, sem confusão, só animado pelos empregados que permaneciam impecáveis e deslizantes. Entrei e fui invadida pela sensação de estar a chegar a casa. Aspirei longamente o aroma das flores minhas familiares e esperei um pouco, até os meus olhos se habituarem à luz fraquíssima que envolvia o espaço.

Desci os degraus e procurei os meus companheiros habituais. Estranhei ao constatar que quase todas as mesas estavam vazias. Felizmente, no seu lugar do costume, lá estava a minha fiel companheira escritora, sentada, a escrever intensamente. Creio que parou por breves momentos quando ouviu os meus primeiros passos no chão de madeira, um gesto modesto, somente para mostrar que tinha tomado conhecimento da minha chegada. Os seus ombros pareceram descontrair-se ligeiramente, mas voltou, quase de imediato, à sua folha de papel branco. Mais ao fundo, também na sua mesa de todos os outros dias, sentava-se o casal que, nos últimos dias e por força das circunstâncias e das prioridades do momento, tinha deixado de atrair a exclusividade da minha atenção.

Só restavam estas duas mesas, todas as outras tinham sido retiradas ou desaparecido, misteriosamente. Parecia que à medida que as pessoas iam cruzando a minha vida e saindo, também iam deixando de ter lugar naquele espaço intemporal. Cada vez me sentia mais confusa em relação a tudo o que me estava a acontecer. Se não tivesse batido com o tornozelo no pé da minha mesa e a ferida não tivesse sangrado diria, quase de certeza, que estava a sonhar ou a atravessar um período de profunda depressão emocional que me provocava uma imaginação delirante.

Desta vez foram as duas personagens do fundo do Salão que me invadiram com as suas declarações íntimas, sem sequer me darem, mais uma vez, a portunidade, nem a disponiblidade para me poder, finalmente, concentrar na rapariga que, desde o primeiro dia, me fascinava, com a sua necessidade impiedosa de transpôr para o papel tudo ou, quase tudo, o que lhe ia na alma.

Aborrecida pela invasão da minha capacidade de pensar, ainda me esforcei por bloquear aqueles pensamentos alheios que me agrediam, mas o resultado foi uma tremenda dor de cabeça, a ponto de recear que estalasse.
Não tive outro remédio senão sujeitar-me à entrada da profusão de considerações daquele casal que se ia tornando cada vez mais insólito. Ela aparentava ter abandonado a sua postura de emancipação feminina fora de moda e voltara a estar vestida discretamente, com um saia e casaco côr de pêssego de corte clássico e uma simples blusa branca. O único indício do curtíssimo período de revolta que vivera há poucos dias atrás, era o seu cabelo muito curto, quase rapado e, lá bem no fundo do seu olhar, o brilho dos sonhadores.

Foi ela quem começou a irradiar os seus pensamentos para a atmosfera:

Nestes últimos dias, desde que descobri que o Leonel me trocou pela minha amiga João, tenho pensado muito sobre a minha vida e o meu futuro e o resultado não tem sido especialmente satisfatório. Interrogo-me sobre o que raio estou eu ainda aqui a fazer, sentada ao pé deste homem que, embora continue a ser meu marido, já há muito que não me dá o que eu preciso.

Cheguei à triste conclusão que o que me tem mantido, todos estes anos, suspensa nele é o nosso passado em comum. Olho para este homem e não consigo impedir-me de ver o rapaz que conheci há 15 anos, quando ainda era uma rapariga nova de 22 anos e ele um borracho de 30. Lembro-me, como se fosse hoje, não há dúvida que era um pedaço de macho atraente. Todo ele sensualidade e masculinidade. Após tantos anos de encontros e desencontros, jogos e mentiras, é triste verificar que já nada nos une, nem mesmo o sexo. Se ao menos tivéssemos tido filhos, mas não, fomos demasiado egoístas para permitir repartir com mais alguém o nosso amor e a nossa obsessão um pelo outro. Limitámo-nos a desculpar e a limpar as nossas consciências, culpabilizando-nos um ao outro, pela impossiblidade, nunca comprovada .

E agora o que é que nos resta, memórias do que foi, desejos do que devia ter existido e não chegou a existir. Quem é que eu quero enganar assim vestidinha, como se fosse uma menina bonita, uma mulherzinha perfeita que só pensa em agradar ao seu maridinho, encher-lhe o bandulho e coser-lhe as meias. Quem é que eu quero enganar com a minhas tretas de mulher fiél e perfeita, sonho de qualquer homem normal. Não passo de um bluf. É certo que sou um do melhores blufs que já existiu ao cimo da terra, mas, mesmo assim, um engano.

Não passo de uma tresloucada hiper-contida neste invólucro de senhora dona. Só me apetece viver que nem uma doida, fazer tudo, experimentar tudo, correr, correr, até ficar sem fôlego. Por um lado, sinto uma necessidade premente de me encontrar e de, finalmente ser eu mesma, por outro, tenho medo do que possa vir a descobrir sobre mim própria e, para o evitar, estou constantemente à procura de alguém que consiga parar estes meus ímpetos de transviada.

Mesmo assim, continuo a adorar as mãos deste homem. É só pena já estar a ficar muito careca. Quando o conheci, tinha um cabelo castanho encaracolado, onde dava um prazer, quase sexual, enterrar e perder as mãos. Ainda sinto arrepios só de pensar nisso. O seu corpo em cima do meu era a maior felicidade do dia, e geralmente do resto do mês. Era quando ele me esmagava com o seu peso que eu conseguia libertar-me de todas as agressões do dia a dia. Nessas alturas, era uma mulher satisfeita e feliz. E tinhamos a certeza que nada, nem ningém seria capaz de nos separar, nunca. Só nos esquecemos de um pormenorzinho, esquecemo-nos de nós próprios. Como é que podíamos adivinhar, quando fazíamos amor até ao delírio, que iríamos ser nós a destruirmo-nos um ao outro.

Embora saiba que, provavelmente, nunca mais vou conseguir ter ninguém como ele, nem amar outro homem como o amei e amo a ele, não posso continuar aqui, a destruir-me, a desaparecer aos poucos, se não tiver coragem de o deixar, estou certa que ele me vai consumir até à morte.

Por seu lado, ele estava, curiosamente, mais descontraído, mas também mais chupado e com o olhar de quem deixara de ter sonhos e ilusões, esmagado pela frieza da realidade que o rodeava. Trazia calças de ganga, já um bocado gastas, uns ténis sem marca e uma camisa de flanela aos quadrados azuis e verdes. O seu cabelo, apesar de ralo, insistia em não se arrumar, pelo que lhe caiam os últimos caracóis para os olhos. Mas apesar de todos estes indícios de idade, a verdade é que podia considerar-se um homem terrivelmente interessante.

Embora ao início estivesse um tanto contrariada por estar a ouvir as queixas daqueles dois, dava por mim, naquele momento, a spmatizar com eles e, até, a ter pena que estivessem tão descoordenados e infelizes. Quando os observara no primeiro dia, nunca pensei que a situação se fosse degradar àquele ponto, aliás tinha ficado com a sensação que os dois se iam orientar, consideravelmente bem, na vida, cada um com os seus esquemas pouco curiais.

A partir daquele momento, passei a ser eu a principal interessada em ouvir todos os pensamentos que trespassavam o ar na minha direcção. Não queria perder pitada.

E foi ele que continuou:

Estou a perdê-la e não sei o que fazer. Sou mesmo um burro, sempre fui, aliás. Nunca consegui orientar a minha vida de forma a ser feliz. Sempre fui perito em perder as pessoas que mais amei e agora preparo-me para a cena final, infelizmente isto não se passa num filme americano, pelo que o fim não vai ser côr-de-rosa e, muito menos, feliz. Não lhe devia ter escondido que sabia do Leonel. Bem disfarcei, mas aquela merda deu-me cabo do juízo, e eu que pensava que ia poder fazer a minha vidinha depravada, todo feliz.

Afinal, gosto desta gaja mais do que eu pensava, dou por mim a sentir a falta dela nos lugares mais estranhos, quando estou a falar com um cliente, quando estou a jogar futebol. Como sempre só dou pelas coisas tarde de mais. Sou um cretino, só sei trabalhar e agora que anseio por uma vida calma e estável, apercebo-me que andei estes anos todos a descurar a pessoa mais importante da minha vida.

Os pensamentos dela sobrepuseram-se:

É engraçado, porque é que toda a gente à minha volta sempre pensou que ele não era um homem especialmente inteligente. Terei sido eu a transmitir essa idéia ou seria por o acharem um homem demasiado atraente e demasiado másculo para poder ser inteligente. Tal como as mulheres loiras que são consideradas burras, vá-se lá saber porquê, talvez por dor de cotovelo de algumas, talvez por defesa de outras. A verdade é que eu sempre soube que ele era um homem inteligente, por isso é que sempre teve medo de mim, sempre soube o que eu era na realidade, um bluf, e não quis magoar-se. E eu que sempre pensei que tinha feito tudo para lhe provar o quanto o queria. Quem me mandou ter a mania que era esperta… .

E ele voltou à carga:

Ela sempre foi uma mulher que me inibiu, devido à sua capacidade de me chocar com o seu à-vontade e a sua, aparente, superioridade. Mas, a pouco e pouco vim a compreender que, no fundo, tudo nela era uma defesa. Essa sua faceta vulnerável revelava-se, sobretudo, quando atirava com a sua perspicácia e a sua força invencível para cima de mim. Na realidade, nessas alturas mais não fazia do que tentar esconder o quanto estava magoada e destruída. Compreendo agora que demorei demasiado tempo a conhecê-la suficientemente a fundo, e por causa quase que a deixei morrer. E agora, logo quando estou a começar a reconhecer as suas fragilidades e a amá-la pela sua sensibilidade, eis que a sinto cada vez mais longe, cada vez mais inalcançável. Gostava de conhecer as palavras mágicas para a reconquistar novamente, mas o meu forte nunca foram as palavras; esse sempre foi o seu departamento.

E o diálogo inaudível continuou com ela
Estou cansada de viver papéis que não me pertencem, de ser o que os outros querem e precisam que eu seja. Já dei tantas voltas a mim mesma que já nem eu sei bem como sou na realidade. Se calhar, não passo de um monstro, de um ser desprezível.

Ele sempre me conseguiu equilibrar, mas agora também já se desinteressou de mim. É natural, deve estar cansado de ser inundado com tanta generosidade, excessiva, farto de se sentir em falta, em suma, farto de mim. Fiz tudo errado, tentei vingar nele a dor que tinha cravada no meu peito. Da sede de vingança, passei para a loucura obsessiva de provar que era a melhor, diferente e única, depois, quando constatei que nada resultava, decidi tentar morrer, para o obrigar a sentir a minha falta. Por último, já que não consegui morrer, comecei a aprender a ser eu própria, a descobrir, aos poucos, como era a minha pessoa e a mostrar-lhe que, no fundo, não passava de uma mulher (embora eu própria sempre tenha desprezado a minha feminilidade). Só que esgotei as minhas forças a provar coisas impossíveis de provar e agora que precisava de toda a minha energia, sinto que a perdi em guerras inúteis. Martirizei-me a mim e a ele, e ambos acabámos por deixar de saber cuidar do nosso amor. No caso dele, estou mesmo convencida que já nem tem saúde mental suficiente para me aturar.

Se pudesse voltar atrás, gostava de poder baralhar todo o jogo da nossa vida e dar as cartas novamente, estou certa que faria jogadas diferentes, menos habilidosas, mas mais sinceras.

Com a minha preocupação obsessiva em ser a mulher ideal, acabei por destruir tudo, até o seu amor por mim.

Era difícil de suportar a completa desconexão que existia entre aqueles dois seres. Nenhum deles conseguia acertar, na altura exacta, no que o outro sentia, e assim se iam perdendo dentro das suas próprias limitações, sem que se apercebessem que estavam a passar completamene ao lado um do outro. Viviam em linhas paralelas.



O martírio dele tornou-se mais angustiante:

Quando ontem fizémos amor já não consegui dar-lhe prazer. Dantes dava-lhe sempre prazer, quer fizéssemos amor todos os dias ou várias vezes ao dia. Agora já nem disso sou capaz. A maior cretinísse é que continuo a ficar doido quando a veja e, principalmente, quando lhe toco, por isso, sofro horrores ao reparar no desinteresse da sua parte. Eu que sempre me senti um homem de sorte por ter uma mulher que gostava de fazer amor comigo e que ainda me excitava de sobremaneira, chego à conclusão ao fim de 15 anos de casamento que só fiz asneiras e que acabei por nunca a fazer feliz. Sou um merdas.

Sem que o tivessem combinado, ambos estenderam as mãos, ao mesmo tempo, e as entrelaçaram, em silêncio, sem um sorriso. Olharam-se com tristeza e pediram, interiormente, desculpa um ao outro. Ela levantou-se, deu-lhe um beijo, ao de leve, nos lábios e os seus olhos marejaram-se de lágrimas, mas, apesar da devastação do seu peito, conseguiu contê-las até estar de costas. Olhou para mim, prolongadamente, e o meu coração deu um pulo, como se pretendesse sair-me do peito. Eu ansiava por poder fazer qualquer coisa, mas o seu olhar inundado, em vez de me solicitar ajuda, impôs-me respeito e exigiu-me silêncio. Encaminhou-se para a porta, rapidamente, de forma a evitar que ele ouvisse o soluço que lhe estava preso na garganta. Subiu os degraus de saída do Salão. E eu só me lembrava daquela gente toda, ruidosa, que estava no Café e imaginava que ela se iria abaixo nos próximos segundos. Nunca tinha sentido tanta pena de alguém. Já no cimo dos degraus, a sua mão, húmida de tanto tentar ocultar as lágrimas, hesitou por brevíssimos segundos sobre a maçaneta da porta. Mas por fim, com grande custo, lá abriu a porta e fugiu, irremediavelmente.

Ele aceitou o beijo dela, sem conseguir articular uma palavra, mas eu sabia que a sua cabeça trabalhava a uma velocidade inacreditável. As palavras atabalhoavam-se e ultrapassavam-se umas às outras, sem que fosse capaz de atira,r uma que fosse, cá para fora. E teria bastado tão pouco para impedir que ela se fosse embora.

Ao vê-la encaminhar-se para a porta ainda esboçou um ligeiro gesto com a mão, como se lhe implorasse para ficar. Mas as lágrimas que lhe escorriam pela cara e o nó cego da garganta impediram-no, mais uma vez, de salvar a sua vida. Desde miúdo que estava habituado a ser maltratado e mal amado, por isso, aquela situação não era nova para ele. Abandonarem-no ou, pura e simplesmente, não acreditarem nele.

A verdade é que ele nunca fizera nada por si próprio, senão ganhar rios de dinheiro que nunca aproveitaria, visto não saber como o fazer. Faltava-lhe um filho que o amasse incondicionalmente, quer ele falhasse, quer tivesse sucesso. Sempre lhe faltara afecto e quando o encontrou não conseguiu acreditar que o merecia. Os seus pais sempre se tinham dado mal, o seu pai, mesmo depois de morrer, continuava a ensombrar-lhe a existência, não só pela falta que sempre lhe fizera, mas, sobretudo, por lhe ter deixado uma herança que ele nunca pretendera e que agora era obrigado a carregar, nem ele sabia bem porquê, nem para quê.

Tinha a certeza que o fim da sua vida ia ser triste e solitário, mas mesmo tendo consciência disso, estava a deixar fugir a única pessoa que, algum dia, o fizera feliz e estupidamente, nada conseguia fazer para o evitar. Ali ficou, colado à cadeira, com os olhos brilhantes de lágrimas e o coração desfeito, a fechar-se, irremediavelmente, no interior do seu peito.

Depois de a ver sair pela porta, a correr, esperou algum tempo, até conseguir parar de tremer. Apoiou ambas as mãos no tampo da mesa e levantou-se a grande custo. Parecia ter envelhecido 10 anos. As suas feições fortes estavam irreconhecíveis, a sua postura, sempre tão dominadora, desaparecera por completo. Era um velho que caminhava pausadamente para a saída, como se estivesse a ir ao encontro da morte. Foi ficando cada vez mais curvado sob o peso da amargura e da culpa, até já não aguentar mais o seu corpo. Na altura em que o vi transpôr a porta, devo ter sido acometida por uma visão, pois pareceu-me que se apoiava numa bengala.

Nunca olhou para mim, nem deu o mínimo sinal de reconhecimento, mas eu sabia que, desde sempre, tinha sentido a minha presença. Mesmo naquele momento, em que eu assistia, arrasada, à sua desgraça final, ele sabia que eu estava ali, para o que desse e viesse, embora não soubesse bem quem eu era. Talvez por isso, já no limite em que a minha visão ainda o conseguia alcançar, ele tenha esboçado um leve trejeito para endireitar as costas. Nem eu compreendi bem o significado daquilo tudo, mas, sem compreender bem como, tive a certeza que o ia encontrar noutra altura, noutra dimensão, talvez, e, quem sabe, numa outra vida que não a terrena.

Depois da porta se fechar fiquei, ainda durante bastante tempo, suspensa na história trágica que acabara de presenciar. Demorei muito tempo a recompôr-me. Quando o consegui fazer, à custa de inúmeros abanões interiores, deixei a minha atenção, finalmente, escorrer para a rapariga à minha frente.

Espantosamente ela não parecia ter sido afectada por todos os fluidos negativos e angustiantes que tinham andado a circular pelo Salão. Prosseguia a sua escrita violenta, como se fosse vital para a sua sobrevivência. Olhei-a longamente, sem conseguir desviar os olhos daquela figura que também me começava a parecer tão familiar, mas sem a conseguir identificar, nem situar no meu passado. Talvez viesse a pertencer ao meu futuro. Na minha vida, tudo era possível.

E ali fiquei, prisioneira dos meus próprios pensamentos, hipnotizada pelos movimentos, ao mesmo tempo, intensos e sensuais da escrita daquela miúda. Ainda vislumbrei a ténue hipótese de me ir embora para casa, só que deixara de saber onde morava, para mim, aquele lugar era o meu lar, o meu esconderijo secreto, onde podia vir a descobrir tudo o que sempre desejara saber sobre mim própria. Quem sabe, não viria a desvendar o verdadeiro mistério da vida e da morte. No fundo, era o que toda a gente pretendia, salvar-se na vida e escapar-se da morte.

De repente senti-me muito cansada, ao ponto de não estar a aguentar o peso da cabeça, nem a suportar a insistência das pálpebras em cairem sobre os meus olhos abertos. Já devia ser bastante tarde. Quando me encontrava no Salão, nunca tinha noção a quantas andava. Mesmo assim, arrisquei-me a pensar que já devia ser de noite. Cruzei os braços em cima da mesa e servi-me deles como almofada. O mergulho no inconsciente foi praticamente instantâneo. A última imagem que capturei, foi a da caneta da rapariga no seu vai e vem caprichoso.























SÉTIMO DIA



Senti uma mão que acariciava os meus cabelos com ternura e um leve aroma a jasmim que me era familiar, embora a minha memória não o estivesse a conseguir situar. A sensação era tão agradável e reconfortante que não podia ser real. Com certeza fazia parte dos meus sonhos. Desconfiada, fechei os olhos, ainda com mais força, e esforcei-me por tentar não acordar, de forma a prolongar aquele contacto tão suave e conciliador.

O facto de continuar consciente daquele afagar prolongado, começou a fazer-me suspeitar se, na realidade, estaria a dormir. Sobressaltei-me ao ouvir um inesperado murmúrio e ao sentir um ligeiro roçar na minha orelha. O murmúrio pronunciava o meu nome e o contacto dos lábios provocou-me um arrepio que me percorreu todo o corpo. Nesse momento tive, finalmente, a confirmação que estava bem consciente e que, mais tarde ou mais cedo, ia ter de abrir os olhos, mesmo que isso significasse perder o efeito balsâmico daquelas mãos misteriosas. Perante tal evidência, permiti-me sentir a vontade de conhecer o feliz contemplado por aquelas mãos tão competentes na arte das carícias. Bastava-me abrir os olhos. E assim, achei que não tinha outro remédio.

Ainda de olhos semicerrados, tentei compreender onde estava. Demorei algum tempo até conseguir localizar-me. Comecei por achar que devia estar em casa, na minha cama, a ser lambida pela gata da minha mãe, só que o roçar era demasiado suave para pertencer à língua áspera de uma gata, mesmo sendo persa. Pouco depois, a dor no pescoço intensificou-se de tal foma que me convenci que tinha adormecido com a cabeça torta. Por essas alturas, já não andava nada longe da realidade. Só uns minutos mais tarde é que, auxiliada por um odor já tão meu conhecido, compreendi que, à minha volta, o Salão continuava a respirar e a viver, tão impaciente como eu por saber o que se estava a passar com o sua derradeira cliente. No fundo, eu limitava-me a ser o seu instrumento, essencial, para conhecer tudo e todos os que entravam nos seus domínios.

Estava, portanto, com um dilema, ou voltava, a todo o custo, para o sonho onde o mundo era um lugar fantástico para se viver e as pessoas excelentes companheiras umas das outras ou, então, só me restava dar a conhecer o meu estado de ser humano consciente e acordadíssimo e partir para a vida (como se costumava dizer), pronta para o que desse e o que viesse.

Após mais alguns minutos de hesitações, achei que a única solução era abrir os olhos. E assim o fiz, embora ainda um pouco estremunhada. A dor aguda no pescoço e o desconforto generalizado por todo o meu corpo, eram sinais evidentes que rapidamente me levaram à conclusão que a posição em que adormecera não tinha sido a mais inteligente.

Mais uns minutos neste logo e doloroso processo de despertar e apercebi-me, então, que nem sequer estava deitada, como seria natural, mas sentada ou melhor, espojada em cima do tampo de mármore frio e duro da minha mesa habitual. Tentei endireitar-me a custo, massajei o pescoço e fiz alguns movimentos circulares com os ombros. Após estas operações reconstituintes, espantou-me sentir que, apesar dos maus tratos que infligira a mim própria durante aquela longa sesta, as condições do meu físico, em geral, até eram razoavelmente boas.

Fiquei, finalmente, apta a tomar consciência do que se passava à minha volta. As mesas e as cadeiras, que antes ocupavam a maior parte do espaço do Salão, tinham desaparecido. Só restava a mesa que me servia a mim e à rapariga das escritas. Os empregados, aparentemente, tinham-se volatizado. Ficara, também, o enorme espelho ao fundo do Salão, a música suave e o odor inebriante das plantas, do qual sobressaia o aroma do jasmin.

Aquele odor a jasmin ia-se tornando cada vez mais intenso, à medida que eu ia despertando do meu sono.

As carícias tinham cessado. E naquele momento, senti uma falta enorme daquele contacto físico que me consolara durante os sonhos loucos que tinham colorido e atormentado o meu sono. Já não me recordava das imagens exactas, limitava-me a ter uma sensação inexplicável de desconforto e receio. Exactamente como as pequenas angústias que, muitas vezes, conseguiam estragar-me o dia, sem que as chegasse a compreender e superar. Nesses dias tristes, limitava-me a tentar apressar o funcionamento dos ponteiros do relógio, na esperança do dia seguinte ser mais descontraído, livre dos fantasmas da noite.

Só nessa altura é que reparei no sorriso intenso da minha companheira de mesa. Olhava para mim com um brilho intenso nos seus olhos, profundos como abismos. Fiquei suspensa no trejeito dos seus lábios. Senti o inesperado contacto da sua pele e uma onda de calor inundou-me o corpo e a alma, como se a sua vida estivesse a mudar de corpo e a transferir-se para mim. A sua mão direita estava pousada sobre a minha, mas o peso não me incomodava, bem pelo contrário, dava-me coragem para o que estava, ainda, para acontecer.

Por momentos, pensei que ia falar comigo. Aliás, durante um instante esperei, convencida que o ia fazer, mas após um imperceptível movimento de ombros, voltou a concentrar-se no papel que estava à sua frente, sem, no entanto, retirar a sua mão direita de cima da minha.

Senti que tinha passado a oportunidade de, algum dia, conhecer a voz daquela rapariga. Tinha de me satisfazer com o doce susurro que chamara pelo meu nome quando estava, ainda, semi-adormecida. Por um lado, fiquei triste, como se perdesse algo de mim própria, por outro, preferia manter aquela relação assim mesmo, silenciosa, sendo a sua escrita e, agora, o contacto da sua mão, as únicas vias de comunicação possíveis. Era como se pertencessemos ambas a um só corpo.

Estes pensamentos começaram a fazer-me desconfiar que já andava a divagar havia demasiado tempo, pelo que não estava a ser capaz de manter a mínima coerência de raciocínio. Preparava-me para prosseguir estes pensamentos intelectualoides quando reparei que a rapariga recomeçara a sua escrita, cada vez mais ansiosa e violenta:


Querida Amiga,

Fiquei muito preocupada com a tua última carta. Como é que é possível só teres 40 quilos, tu que, ainda, és mais alta do que eu. Afinal, o que é que se passa contigo?.Não tens espelhos em casa para veres que a tua cara deve assemelhar-se a um cadávere?. Estou ansiosa por que regresses para perto de mim, assim vamos poder dar umas palmadas uma à outra e, sobretudo, poderei controlar a tua alimentação, nem que para isso tenha de usar um pau, como se faz aos gansos, para lhes enfiar a comida pela goela abaixo.

É natural que não consigas domir, nem fazer a tua adorada e exagerada ginástica. Não tens forças para tanto. Deves estar um susto, com esses ossos todos à mostra e sempre morta de cansaço. Estou em pânico por tua causa. Eu sei que não sou nenhum exemplo de sensatez, nem, mesmi, de normalidade, mas, por favor, não sigas o meu mau exemplo e trata de ti melhor. Preciso muito de ti, da tua existência neste mundo, de forma a que eu própria seja capaz de sobreviver a todo desgaste que me corroi o dia a dia.

Conheço demasiado bem o teu sofrimento e a tua inteligência para compreender que estás no único processo de auto-destruição que te é permitido. Isso é um suicídio, lento e penoso, sustentado, como a maioria deles, numa esperança, se bem que cada vez mais ténue, de que apareça alguém que te salve de ti própria.

Tenho muito medo que morras, até porque se tu desapareceres, eu deixarei de ter com quem partilhar as loucuras e amarguras que têm reduzido, gradualmente, a minha esperança de vida.

Às vezes penso que somos como duas irmãs gémeas. Eu sinto a tua dor, o teu esgar de socorro, não importa a que distância estejas de mim. Tu ouves a minha frustração, tentando ter uma visão diferente das coisas que me acontecem e, por muito más ou desagradáveis que essas possam ser, ensaias sempre uma primeira abordagem cautelosa e positiva. Eu sei que é, unicamente, para eu me poder sentir melhor comigo própria, visto que sabes, bem demais, que não me tenho em grande consideração.

Mudemos de assunto.

Já que na nossa conversa telefónica de ontem te zangáste por eu, já há algum tempo, não te dar conta da evolução ou melhor, da regressão da minha historieta amorosa, aqui vai a continuação sofrida do meu futuro pouco promissor. Perdoa-me se a história não te alegrar, pelo menos, espero que tenha o condão de te fazer esquecer, por alguns minutos, as tuas dores.

Como te confessei ao telefone, não consegui libertar-me dele, nem mesmo depois do incidente desagradável com a sua irritante mulherzinha. Na verdade, parece que o facto de ela ter tanta facilidade em dizer mal dele, em vez de me afastar, acabou por me prender ainda mais àquele homem. Tudo devido à velha tendência feminina para ser defensora dos oprimidos e dos desgraçadinhos.

Só te digo que nestas duas últimas semanas tudo me aconteceu. Não penses que me saiu o totoloto, se isso tivesse acontecido, a esta hora já estaríamos as duas a caminho de uma ilha isolada do resto do mundo, bem longe de nós próprias, a curtir a vida de outras pessoas quaisquer, desde que não fossem as nossas.
Ele prometeu, vezes sem conta, que saía de casa para ficar comigo ou, pelo menos, junto de mim, mas nunca chegou a concretizar essa minha ânsia. Foram incontáveis os dias em que fiquei à espera que ele viesse, com armas e bagagens. Ali estava eu a olhar a rua, através dos vidros da janela, primeiro com o coração a bater descompassado devido a tanta felicidade e depois, à medida que os minutos iam passando e as horas se iam escoando, sem compaixão, as lágrimas engrossavam e sufocavam-me a garganta.

Quando já não suportava tanta infelicidade, e como derradeiro recurso, tentei matar-me ou, se calhar, só dar essa ideia, mas, feliz ou infelizmente, nem eu nunca morri, nem ele fez fosse o que fosse com medo de me perder. Limitava-se a evitar-me ou, quando as cenas aconteciam na sua presença, limitava-se a impedir que eu conseguisse concretizar a minha loucura.

Acredita em mim, minha amiga, acho que, durante uns tempos, elouqueci. Tentei afogar-me na praia, correndo que nem uma tresloucada para o mar, tal como já vira acontecer numa cena de um filme dramático, em que a heroina é salva, no derradeiro segundo, pelo seu apaixonado que acaba por lhe jurar, de lágrimas nos olhos, o seu amor eterno. Chega mesmo a pedi-la em casamento. Doces ilusões as que os filmes nos fazem viver, só que, no final, não passam de sonhos. Até porque me esqueci que no cinema, habitualmente as cenas perigosas são feitas por duplos e não pela actriz principal. No meu caso, tive sorte em não ter feito uma figura demasiado triste. É que à última da hora tive de reduzir a minha corrida, para que ele conseguisse apanhar-me. Numa outra ocasião, ameaçei atirar-me do carro em andamento, mas foi um fiasco ainda maior, pois ele limitou-se a mandar-me fechar a porta e a repreender-me, afirmando que já não tinha idade para aquelas palermices. E eu lá obedeci, é claro. Que remédio. Enfim, não vou continuar o chorrilho de parvoíces que me passaram pela cabeça e que acabei por pôr em prática. Já basta a vergonha que tenho de mim própria sempre que me lembro disso.

Tu conheces-me bem, como se eu fosse tu própria, por isso sabes que, apesar do tom superficial e irónico com que te estou a descrever os meus acessos de frustração mais violentos, cá no fundinho da minha alma tenho sofrido horrores.

Como cheguei rapidamente à conclusão que a encenação dos meus actos de suicídio não me iam levar longe, comecei a deixar de comer. Tal e qual como tu, daí estar tão preocupada contigo. Talvez dessa forma ele reparasse em mim e, finalmente, acreditasse que me podia perder irremediavelmente se me quando começasse a ver-me definhar. E foi desta forma estúpida e inconsciente que comecei a acabar com o meu corpo, lentamente, na esperança que também a minha memória e todo o meu eu mirrasse por solidariedade. Perdi completamente o controlo sobre a minha vida física. Fui tão longe na minha intenção de desaparecer que quem acabou por se assustar, realmente, com o meu estado geral de fraqueza fui eu própria. Só que já era tarde demais para alguém me poder ajudar e, agora, estou mesmo no fundo do abismo, em amena cavaqueira com todos os meus fantasmas de estimação, sem conseguir dormir, sem conseguir sequer pensar na melhor forma de me libertar deles.

Escrever-te tem sido a minha única hipótese de sobrevivência, se bem que remota. Agora que penso como cheguei a este estado, acho que o que mais me elouqueceu e deitou para o inferno interior em que actualmente flutuo, foi o chorrilho de promessas nunca cumpridas, nenhuma delas. Tudo começou a falhar, primeiro entre nós os dois e depois entre o meu eu físico e o meu eu emocional. Dois eus que deixaram de se conseguir encontrar, pior, deixaram de saber viver juntos, como um só.

A tua existência na minha vida, se bem que afastada e intermitente, tem sido a única âncora que me permite emergir, de vez em quando, do lodo em que me encontro. Sempre que olho para o espelho ou para uma fotografia recente de mim própria e me vejo como estou, fico apavorada. Estou assustadora. Nessas alturas, faço um esforço para interromper esta minha caminhada para a morte, para tentar acreditar que o horizonte ensombrado que vejo no meu futuro, se deve, não à realidade que me rodeia, mas aos meus olhos degradados e ao meu cabelo desvitalizado que me cai em farripas para o rosto.

Estou aqui sentada a escrever, sozinha comigo própria, dividida, como sempre. Uma parte de mim insiste para que eu continue esta cruzada fatal, mera curiosidade de como tudo em mim vai acabar, a outra parte de mim própria está farta de tudo, descrente e desistente. Podes perguntar de onde vem toda esta aberração em que me sinto a viver, nem eu própria sei. Sabes, minha querida amiga, não há dúvida que quando as pessoas têm capacidade de nos magoar, mesmo sem o saberem, conseguem fazer-nos mal, ao ponto de nos destruir. E o pior é quando, como eu, temos a mania que somos fortes e impenetráveis.

Desde que me lembro da minha existência como ser humano, tenho encenado diversos papéis, com o objectivo de estar, sempre, à altura de todos os que me rodeiam. O resultado foi o de quase me convencer que era mesmo como as personagens dos papéis que ia debitando, ora sempre bem disposta, ora sempre pronta para a luta e para a sobrevivência. Se me visses neste momento, acho que até te rias ou, se calhar, choravas com pena de mim ou com raiva, por te estar a desiludir tão profundamente. Tu, tal como os outros, sempre julgáste que eu era especial e bestial, mas como estás a ver, não sou nada disso. Deixei de conseguir disfarçar. Eu sou mesmo assim, forte e vulnerável, alegre e angustiada, séria e tresloucada. Não sou diferente de ninguém, limito-me a ser, também eu, um ser humano incompleto.

A mão dela continuava sobre a minha, como se as duas fizessem parte de um mesmo corpo, tal o entrosamento que sentia. Só nessa altura é que me apercebi que todas as palavras que a rapariga escrevera, e às quais eu tivera acesso, tinham-me sido transmitidas através da sua mão que, embora estivesse gelada, tinha o condão de me confortar, como se me quisesse impedir de cometer alguma loucura.

Pela primeira vez, naquele estranho dia, observei calmamente a rapariga que se encontrava à minha frente, debruçada sobre o papel. Continuava a escrever com avidez, escrevia como se fosse a correr para a saída de emergência da vida, a fugir da morte ou à procura dela. Observei, com atenção os dedos que agarravam a esferográica, não pareciam dedos humanos, pois não estavam envolvidos pela carne, como seria de esperar. Não passavam de ossos que se movimentavam, deixando ver todas as pequenas articulações em funcionamento. As sua unhas cortadas muito rentes aos dedos delicados, eram brancas como a neve, quase que transparentes. Ela usava mangas compridas, mas adivinhava-se os seus pulsos, protegidos pelos punhos da camisa, excessivamente magros.

Como é que eu podia não ter reparado no estado de fraqueza geral em que aquela rapariga se encontrava. Continuei, receosa, a subir na minha observação, até alcançar a sua cara. Os cabelos, que outrora me tinham parecido espessos, como uma floresta impenetrável, pareciam ter esbranquiçado e não passavam de farripas translúcidas. Quando alcancei a sua cara é que compreendi que era a primeira vez que a via. Uma cara tão magra que parecia mirrada, onde os olhos castanhos se destacavam pelo brilho que, inesperadamente, ainda se mantinha vivo por detrás das lentes dos óculos. Estavam rodeados por orlas escuras, muito vincadas, piores do que as olheiras resultantes de uma noite de farra rija. Os seus lábios, muito bem desenhados, eram finos e estavam quase da cor da pele, uma pele pálida, quase translúcida, que estava coberta por uma camada de penugem suave.

Sentia-me agoniada e tonta perante tal espectáculo de infelicidade e desgraça. Não era possível. Quase podia jurar que no primeiro dia, embora tivesse olhado para mim com uns olhos tristes e a sua expressão fosse fechada, o seu aspecto era consideravelmente melhor. Como é que alguém podia deixar-se desaparecer assim, em apenas seis dias.

O meu olhar magoado e inútil regressou à mão que continuava sobre a minha. E ela continuou a sua narrativa angustiada:

Tinhas razão quando me dizias que não devemos esconder aquilo que somos, por muito doloroso que isso se possa tornar, para nós e para os outros. Só que quando estamos toda a nossa vida a representar vários papéis que não o nosso, acabamos por deixar de saber como somos na realidade e começamos a ter receio do que possamos vir a revelar ao mundo.

O meu pior problema é que deixei de saber como viver comigo própria. Todas as manhãs, logo que acordo, corro para o espelho, na esperança que ele me devolva uma imagem que corresponda à mulher que sou eu. Mas após uns minutos de paciente observação, a cara que nele se reflecte não passa de mais uma desconhecida e chego sempre à mesma conclusão, manhã, após manhã. É que não tenho a menor ideia de quem é que está ali a olhar para mim, de forma tão insistente. Resultado, como não me conheço, dou por mim a desconfiar dos meus reconhecidos actos de grandeza e de amizade desinteressada. O meu pensamento mais imediato é o de que não estou a ser eu própria. Aterroriza-me a possibilidade de me vir a revelar uma peste insuportável.

Agora que percebi que o outro eu me topou, deixei de poder continuar a actuar nos variadíssimos filmes que sempre orientaram a minha vida. Já não posso imitar as heroínas dos filmes, nem fingir que, no final, tudo vai acabar em bem. No filme em que, neste preciso momento, me encontro o final não vai ser ser muito brilhante. A heroína nem sequer está certa de conseguir vir a sobreviver, nem tem bem a certeza de o querer fazer. As frases que me saiem já não podem ser reproduzidas dos discursos ficcionais dos actores, vou ter de ser eu a formulá-las e a inventá-las, de acordo com um dos meus dois eus. Olha, só te posso dizer que desejo que vença o melhor ou, talvez, o mais forte, de forma a garantir a minha própria continuidade.

Já basta de falar de mim, já chega de tantas confissões despropositadas. Não te vou chatear mais com isto. Quero é que voltes depressa para casa e que te ponhas boa, juntamente comigo. Já não sei qual de nós está pior. E sabes, o que mais me chateia é esta nossa mania de ser magras e perfeitas não passar da doença da moda. Sempre tive esperança de morrer de forma original, mas se calhar, já nem isso existe, uma maneira diferente de morrer. Morte é morte. Tal como o nada é nada. Neste tipo de coisas não existe um assim assim, nem um meio termo, ou se está ou se deixou de estar. Ponto final.

Nós as duas sempre vivemos em consonância uma com a outra, no bom e no mau, apenas diferiu a cor dos diversos caminhos que temos cruzado, fora isso, nada tem sido original. E é precisamente essa falta de originalidade em tudo o que me acontece que me está a dar cabo do juízo. Gostava de ser a única em alguma coisa. E o pior é que se, até aqui há algum tempo, estava profundamente convencida que, pela primeira vez na vida, tinha conseguido ser a única e a insubstituível, actualmente já me deixei dessas ilusões e vejo-me forçada a encarar a dura realidade de frente (ou melhor, deitada, já que só o consegui apreender após uns copos reconfortantes), não é possível ser insubstituível e imprescindível para ninguém como eu sempre quis.

Quando o conheci, naquele consultório malfadado e quando ele me abriu a porta da rua e me olhou com aqueles olhos incríveis devia, desde logo, ter percebido que o ardor que me encheu o peito só se comparar com o choque do início da vida e com desalento do fim.

E já estou novamente a falar de mim própria, tens de me perdoar, é só contigo que consigo falar sobre mim própria. Para os outros só sirvo para ouvir e dizer de minha justiça. Por muito que tente dar a volta a mim própria não consigo construir relações mais equilibradas. Eu sei que a culpa é minha. Acho que me faltou ver um filme ou ler um livro em que o actor ou a personagem vivesse um drama semelhante a este. Assim, fiquei sem saber o que fazer. Bem vou encarnado personagens diversas, mas parece que nenhuma é satisfatória, pelo menos para mim própria. Vou-te confessar, mais uma vez, a maior enormidade que já me deves ter ouvido, é que já não sei como sou. Deixei de saber com quem ando todo o dia, com quem durmo todas as noite, em suma, que raio de papel é o meu nesta vida. Será que me podes ajudar, tu que já me conheces praticamente desde que nasci.


Estava a ficar cada vez mais confusa e indisposta. Se não fosse aquele contacto da mão da rapariga sobre a minha, convencia-me que tudo aquilo não passava de uma miragem. Olhei mais uma vez para as nossas mão unidas, a sensação física era muito agradável, embora um pouco fria. Só naquele instante é que notei como os seus dedos estavam frios.

Comecei a observá-la mais atentamente e espantou-me vê-la a tremer de frio. Parecia fora de propósito, dado que a temperatura no Salão continuava amena e aconchegante. A verdade, é que o frio dela ia-se colando gradualmente ao meu corpo, até envolver, por fim, a minha própria alma. E eu que até, àquele momento, me considerava uma mulher anormalmente quente.

Quando pensei já não suportar mais o frio, vi-me compelida a retirar a mão e a enfiá-la por debaixo do sovaco direito, na tentativa de a aquecer.

No preciso segundo em que desfiz a ligação física entre nós, fui envolvida por uma sensação assustadora. Nunca antes sentira nada semelhante em toda a minha carreira como ser humano. Nunca antes tivera uma sensação de abandono tão profunda como a que me envolveu instantaneamente. A certa altura, pareceu-me que abandonara o meu corpo e pairava sobre nós as duas. Olhei para baixo e fui agredida por uma tontura incontrolável, ao ver-me (ao meu eu físico, quero eu dizer) na mesma posição, sentada na cadeira, à frente da rapariga e, ainda, a olhar para ela.

E foi nessa posição surrealista que a vi parar de escrever e ficar com a esferográfica suspensa na mão, como se hesitasse em escrever mais algumas palavras.

Continuava com a sua expressão constrangida e triste. Os seus olhos, dois abismos brilhantes, sem fim, escondiam-se por detrás dos óculos de armação azul que, por um lado, lhe compunham a cara pálida e, por outro, também evidenciavam a sua magreza exagerada. Hesitou e por momentos pensei que ia falar comigo, mas não. Reuniu todos os papéis escritos na sua letra delicada e estendeu-os na minha direcção, sem uma palavra, sem mais nenhum sinal. E eu, sem ser bem dona do meu corpo, também estendi as minhas mãos para aceitar aquela herança, tão fantástica. Encostei os papéis ao peito e aí os mantive, enquanto a vi levantar-se, em câmara lenta, virar-me as costas e sair do Salão, como uma miragem, como uma nuvem de fumo que se desfaz com o vento.

Depois desta cena mirabulante, a confusão já generalizada da minha memória tomou conta de todo o meu corpo. Senti a cabeça começar a andar à roda, sem que conseguisse controlar a sua velocidade. Tanto me via a pairar sobre o Salão, como ainda sentada na mesa que partilhara, durante seis dias, com aquela estranha rapariga.

No canto mais recôndito do Salão, lá estava o espelho gigante, a observar e a registar tudo o que se passava. Pela primeira vez naqueles seis dias, tomei plena consciência da importância da sua presença. A certa altura, tenho a vaga lembrança de me ter levantada, semi-hipnotizada por aquele espelho, mas não consegui completar mais do que dois passos, pois logo o chão fugiu dos meus pés. Olhei para baixo, apanhada desprevenida por aquela sensação de queda e vi que caia ao longo de um poço sem fundo, impenetrável. Curiosamente, não sentia medo, apenas curiosidade por saber onde é que iria parar.







ÚLTIMO DIA



Abri bem os olhos e vi-me frente a um espelho enorme. Fiquei impressionada com a imagem que nele se reflectia. Os anos tinham passado, sem deixar grandes estragos, no entanto, a cara e o corpo nú, que insistiam em ser os meus, pareciam uma mera assombração de como ainda me recordava de mim própria. Uma miúda alegre, de formas generosa.

Como é que me deixara degradar ou desaparecer até àquele ponto de desistência física? Não suportei durante muito tempo aquela mulher que se esforçava por me fazer acreditar que era eu. Sentia-me como uma nuvem de fumo. Como se o meu corpo se estivesse a esvair, aos poucos, na atmosfera. Lembrava-me aquelas argolas de fumo que fazia com o cigarro aos 16 anos, para impressionar os rapazes e fazer inveja às minhas amigas. Começaram por ser argolas de principiante, desengonçadas e sem formas muito bem definidas, com o tempo e o treino transformaram-se numas argolas cheias, de formas generosas e bem delineadas mas, no fim, acabavam sempre por se esfumar no ar, sem que pudesse fazer nada para as conservar. Assim estava eu, a desvanecer-me, suavemente, a fundir-me com a natureza. E isso nada tinha a ver com a idade.

Custava-me sustentar o olhar daquela personagem reflectida no espelho. A certa altura tornou-se-me insuportável encarar aquela imagem desconhecida que insistia em imitar todos os meus movimentos e em absorver todas as minhas dúvidas.

Baixei os olhos, sem, no entanto, admitir que me rendia à evidência da minha degradação, e reparei que aos meus pés, jazia uma fotografia. Estava de cara para baixo, pelo que tive de me baixar para a apanhar. Virei-a para mim. Duas caras sorriam, felizes, encostadas uma à outra, em jeito de cumplicidade, dois pares de olhos observavam-me, através de um passado que não consegui situar temporalmente, tal o peso brutal e a tristeza que me tomaram o peito. Demorei algum tempo a conseguir identificar aquelas duas pessoas e gastei o resto de esperança que ainda havia dentro mim a tentá-lo. Quis ignorá-las. Mas, de repente, toda a minha vida começou a decorrer à minha frente, como um flash, a ferir-me os olhos. E então, não consegui mais esconder-te em mim e lembrei-me de ti. E a dor foi maior do que qualquer ser humano podia suportar. Toquei no rosto da mulher que me sorria, sonhadora e feliz, e tentei encontrá-la na minha cara e dentro de mim própria. Acariciei o teu rosto que olhava para mim, sonhador e feliz, tentei capturar o teu sorriso e alcançar o brilho do teu olhar. Fechei os olhos para melhor te sentir e quando os abri tu já lá não estavas.

E, então desisti de tudo, deitei no chão o meu corpo dorido, e encolhi-me como quem se quer proteger do mundo, com as pernas bem encostadas ao peito e os ossos salientes dos joelhos a tocar-me o queixo.

Pousei a cara em cima do teu espaço vazio na fotografia e ali fiquei, à tua espera… .