terça-feira, 3 de junho de 2008

A Vida e as Aventuras do Rapaz Relâmpago

"A Vida e as Aventuras do Rapaz Relâmpago" é o testemunho que Bill Bryson nos oferece da década de 50, do século XX. Nessa época quase todos os heróis viviam nos EUA; o Super-Homem, o Sky King, o Zorro, o Roy Rogers, a Mary O’Leary, as chefias políticas e militares, os cientistas e os intelectuais, alguns outros adultos, quase todas as crianças e o próprio Bill Bryson, quando ainda vestia a “Sagrada Camisola de Zap”, heróis quase sempre desmentidos nas suas virtudes pelos juízos da História.
Eram anos com “propostas pouco realistas”, em que todos se sentiam felizes por consumir novos produtos. Tudo parecia ser benéfico e era recebido com euforia; desde os electrodomésticos, a comida instantânea, uma cartilha ideológica, a televisão, os carros, até aos primeiros testes nucleares.
Bill Bryson constrói uma narrativa que deixa perceber paralelismos entre os comportamentos dos heróis das histórias aos quadradinhos, muitas das quais lidas no “Curral dos Miúdos”, as séries televisivas, os filmes de ficção científica, e os comportamentos sociais de uma América branca que se julgava a si própria indestrutível.
Como todos os super-heróis, o Rapaz Relâmpago vem de um planeta distante (Electrão), mas aprende a gostar do planeta onde passa a viver, aprende a gostar dos pais presuntivos, dos colegas de escola, da cidade onde mora, enfim, do mundo que o rodeia.
“Este é um livro sobre pouca coisa: sobre ser pequeno e ficar maior lentamente.” Mas talvez, nenhuma, nem todas reunidas, as virtudes heróicas por si só sejam suficientes para conseguir a imortalidade. Maria Teresa Loureiro.
In: Revista LER, Junho de 2008

JOGO CEGO

“Prenúncio de Chuva”, do norte-americano Dennis Lehane, é o quinto romance vivido pelo detective privado Patrick Kenzie. A história parece simples, quase demasiado comum numa cidade como Boston. Karen Nichols, o género de mulher que passava as meias a ferro e tinha uma colecção de peluches, contrata Patrick Kenzie para a livrar de um homem que a anda a assediar, o tipo de homem que pensava constantemente que alguém o observava por admiração ou inveja. Mas as aparências iludem, e o que parece ser um caso resolvido de forma satisfatória, renasce como um pesadelo, quando meses mais tarde, a imaculadamente bem-comportada Karen se atira, nua, da plataforma de observação da alfândega, deixando para trás um rasto incoerente de drogas e prostituição e as palavras gravadas na memória do dono de um motel de má fama Vês? Ninguém ama. Ninguém ama.
Imprevisível desde o início, e sem garantia de vir a ter um final feliz, a intersecção da profundidade e detalhe característicos da investigação policial com o ritmo e o choque do thriller psicológico arrasta-nos pelas ruas de Boston e pelo pântano de mirtilos de Plymouth, como espectadores de um jogo do gato e do rato em que nem sempre é claro quem é o caçador e quem é a presa. A história estrutura-se como o argumento de um filme; as descrições minuciosas dos espaços e das sensações dão o ritmo especial ao desenrolar da acção, física e psicologicamente violenta.
Quais três mosqueteiros, vigilantes e vingadores, Patrick Kenzie, Angela Gennaro e Bubba Rogowski complementam-se e apoiam-se na caça contra-relógio ao impiedoso responsável pelo suicídio de Karen Nichols, um homem com personalidade magnética que despreza limites, perito em traçar planos de contingência para baralhar pistas.
Patrick mantém-se fiel aos seus padrões de humanidade e quase se deixa submergir pela pressão psicológica criada pelo sociopata que o assombra. Angie, neta de um chefe da máfia, o que a protege da perversidade do assassino, é a voz racional que segura o detective à realidade (não o deixes entrar-te na cabeça. É o que ele quer). Bubba é a força bruta (ao seu lado, John Wayne era um medricas), com lampejos de perspicácia inesperados, que garante a sobrevivência dos três.
Como num puzzle, as personagens são encaixadas e ajustadas nos espaços que lhes foram reservados pela mente brilhante e cruel do assassino, que, como um veneno incolor e inodoro, se entranha lenta, mas eficazmente, na vida das vítimas, até destruir tudo o que as rodeia e as arrasar moralmente. Em câmara por vezes lenta, por vezes em velocidade acelerada, os diálogos criam uma dinâmica própria no enredo e transmitem-nos a angústia, o medo e mesmo a dor, colocando-nos em comunhão total com as personagens. Através de Patrick, cada uma delas vê-se obrigada a confrontar-se com os seus infernos íntimos, mas é também através dele que expurgam os pecados do passado, ao abrirem caminho para a resolução inesperada do caso.
Mas o sol começava a desvanecer-se e a brisa, moderadamente fria e soprando entre as árvores, trazia consigo um ténue prenúncio de chuva. Maria Teresa Loureiro.
In: Revista LER, Junho de 2008