terça-feira, 8 de julho de 2008

"Gomorra"

Gomorra, de Roberto Saviano, é um relato impressionante sobre o poder empresarial e as práticas criminosas da Camorra napolitana. Num registo documental, Saviano desvenda as novas lógicas e as novas dinâmicas do crime organizado, da sua estrutura e das suas ramificações, descrevendo os investimentos, legais e ilegais, nos mais variados sectores – recolha e tratamento de lixos, construção civil, empresas de saneamento, venda a retalho, produção têxtil, importação e exportação de electrodomésticos e outros bens de consumo, etc. Tudo isto faz parte de uma nova face da economia do crime, das novas fontes de rendimento que o alimentam e perpetuam.
Mas Gomorra é também a história de homens marcados por um lugar, “um lugar onde o mal se torna todo o mal e o bem todo o bem”, como se aí só fosse possível escolher um de dois caminhos: para o céu ou para o inferno, sem espaço para hesitações, nem zonas cinzentas. Nápoles é uma cidade que se deixa estigmatizar pelo “Sistema”, uma cidade que se fecha sobre si própria, apesar de ter um dos portos mais movimentados do mundo. Nápoles é uma pústula a apodrecer ao Sol, aparentemente sem salvação possível. “ (…) levantou-se de manhã cedo e foi ao lugar onde tinha estado na presença do Senhor. Voltando os olhos para o lado de Sodoma e Gomorra e para a extensão do vale, viu elevar-se da terra um fumo semelhante ao fumo de uma fornalha.” (Génesis 19, 27)

Maria Teresa Loureiro
In: Revista LER, Julho 2008

Arquitecturas do Acaso

“Abrir as portas ao acaso significa estar vivo.” É com esta frase que Stefan Klein encerra o livro cujo tema põe em causa a ordem ilusória em que vivemos: o papel inquestionável do acaso na nossa existência.
Destino ou acaso, será a escolha uma questão de fé? Admitir que a nossa vida cumpre um caminho preestabelecido deixa-nos mais descontraídos e alimenta esta nossa sede de compreender e dominar o mundo. Gostaríamos de poder desvendar o futuro, pois achamos que, se nos livrássemos do inesperado, a nossa vida passaria a ser mais agradável, mas esquecemo-nos o quanto nos aborrece a monotonia e que os imprevistos acabam por tornar a nossa existência empolgante. O cérebro ajuda-nos nesta tendência para subestimar os efeitos do acaso, pois, sendo defensor da simplificação e da padronização, dota-nos de truques cuja função, nem sempre ideal, é levar-nos a só ver o que queremos e a transformar a mais evidente coincidência casual numa ocorrência estrategicamente delineada pelo destino. E na verdade, será que estamos dispostos a acreditar que os acontecimentos e acasos com que os nossos filhos se deparam todos os dias influenciam mais a evolução do relacionamento que eles estabelecem com o mundo que os rodeia fora de casa do que a educação que nos esforçamos por lhes dar, e de que tanto nos orgulhamos?
“O sucesso é composto por 95% de sorte e 5% de capacidade.” Klein socorre-se das palavras do filantropo americano Julius Rosenwald, para nos avisar que o sucesso pouco depende da nossa vontade, são demasiadas as circunstâncias e as coincidências que interferem nos rumos que traçamos. Resta-nos aprender a tirar o melhor partido dessas forças aleatórias e imprevisíveis, para reduzirmos as consequentes perdas e impactos negativos, e admitir o “jeito” que, por vezes, nos dá ser o acaso a decidir por nós, evitando-nos posteriores sentimentos de culpa; só assim conseguimos avançar e evoluir.
Leonardo da Vinci “procurava conscientemente os acasos como fonte de inspiração para as suas criações”, era a sua maneira de se sentir livre. Embora nos dê a sensação de fazermos parte de um jogo que não dominamos e, por vezes, nos surpreenda com ocorrências dolorosas e negativas, o acaso torna-nos mais atentos e estimula a nossa imaginação e criatividade; comanda as nossas vidas, mas garante-nos a emoção do inesperado.

Maria Teresa Loureiro
In: Revista LER, Julho 2008