terça-feira, 3 de junho de 2008

JOGO CEGO

“Prenúncio de Chuva”, do norte-americano Dennis Lehane, é o quinto romance vivido pelo detective privado Patrick Kenzie. A história parece simples, quase demasiado comum numa cidade como Boston. Karen Nichols, o género de mulher que passava as meias a ferro e tinha uma colecção de peluches, contrata Patrick Kenzie para a livrar de um homem que a anda a assediar, o tipo de homem que pensava constantemente que alguém o observava por admiração ou inveja. Mas as aparências iludem, e o que parece ser um caso resolvido de forma satisfatória, renasce como um pesadelo, quando meses mais tarde, a imaculadamente bem-comportada Karen se atira, nua, da plataforma de observação da alfândega, deixando para trás um rasto incoerente de drogas e prostituição e as palavras gravadas na memória do dono de um motel de má fama Vês? Ninguém ama. Ninguém ama.
Imprevisível desde o início, e sem garantia de vir a ter um final feliz, a intersecção da profundidade e detalhe característicos da investigação policial com o ritmo e o choque do thriller psicológico arrasta-nos pelas ruas de Boston e pelo pântano de mirtilos de Plymouth, como espectadores de um jogo do gato e do rato em que nem sempre é claro quem é o caçador e quem é a presa. A história estrutura-se como o argumento de um filme; as descrições minuciosas dos espaços e das sensações dão o ritmo especial ao desenrolar da acção, física e psicologicamente violenta.
Quais três mosqueteiros, vigilantes e vingadores, Patrick Kenzie, Angela Gennaro e Bubba Rogowski complementam-se e apoiam-se na caça contra-relógio ao impiedoso responsável pelo suicídio de Karen Nichols, um homem com personalidade magnética que despreza limites, perito em traçar planos de contingência para baralhar pistas.
Patrick mantém-se fiel aos seus padrões de humanidade e quase se deixa submergir pela pressão psicológica criada pelo sociopata que o assombra. Angie, neta de um chefe da máfia, o que a protege da perversidade do assassino, é a voz racional que segura o detective à realidade (não o deixes entrar-te na cabeça. É o que ele quer). Bubba é a força bruta (ao seu lado, John Wayne era um medricas), com lampejos de perspicácia inesperados, que garante a sobrevivência dos três.
Como num puzzle, as personagens são encaixadas e ajustadas nos espaços que lhes foram reservados pela mente brilhante e cruel do assassino, que, como um veneno incolor e inodoro, se entranha lenta, mas eficazmente, na vida das vítimas, até destruir tudo o que as rodeia e as arrasar moralmente. Em câmara por vezes lenta, por vezes em velocidade acelerada, os diálogos criam uma dinâmica própria no enredo e transmitem-nos a angústia, o medo e mesmo a dor, colocando-nos em comunhão total com as personagens. Através de Patrick, cada uma delas vê-se obrigada a confrontar-se com os seus infernos íntimos, mas é também através dele que expurgam os pecados do passado, ao abrirem caminho para a resolução inesperada do caso.
Mas o sol começava a desvanecer-se e a brisa, moderadamente fria e soprando entre as árvores, trazia consigo um ténue prenúncio de chuva. Maria Teresa Loureiro.
In: Revista LER, Junho de 2008

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