quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Veneza, um sonho que nunca se desvenda

Fonte de inspiração de romances e contos policiais, palco de filmes que fazem parte do nosso imaginário romântico, Veneza é uma cidade enigmática que habita os nossos sonhos desde criança e fomenta a nossa vontade de viajar e conhecer o mundo; neste caso, um pequeno mundo, sem carros, onde só se anda a pé, de barco, ou de gôngola.
Com uma traça urbanística ainda claramente medieval, Veneza estende o seu mistério, discretamente, ao longo de 118 ilhas; palazzi góticos e elegantes construções renascentistas e barrocas equilibram-se sobre milhões e milhões de troncos de árvores que servem de sustentação a toda a cidade.
Chegar a Veneza deixa-nos sem ar perante a versatilidade e beleza do ambiente que nos vai envolvendo; tanto somos inundados por espectáculos de cor e luz que parecem partir das fachadas de ouro e de mármore dos palácios, como somos absorvidos pelas sombras das ruas e ruelas ao longo dos muitos canais que desenham a sua malha urbana.
Esquecemos os turistas com os quais nos cruzamos em cada esquina, resistimos às lojas de “souvenirs” e deixamo-nos ir ao sabor de uma viagem onírica, à descoberta do que faz desta cidade uma das mais belas e enigmáticas do mundo.
Damos por nós na Praça de San Marco, sem que consigamos lembrar-nos de como chegámos a esta grandiosa praça habitada por dezenas de pombas que insistem em dar-nos as boas-vindas; talvez de vaporetto ou de gôndola, ou quem sabe, de táxi-barco. Na verdade, pouco importa, o que vemos à nossa volta torna qualquer preocupação uma futilidade sem interesse. Não sabemos por onde começar a nossa deambulação; hesitamos entre ir beber um capuccino ao café Florian, na esperança de sentir no ar uma brisa fugaz da genialidade de Proust, Balzac ou Twain, visitar o Palácio dos Doges ou ofuscarmo-nos com o brilho dourado, algo irreal, do Museu da Basílica de San Marco, mas o bater das horas recorda-nos que o tempo não pára e é sempre escasso. Admiramos o belíssimo campanário renascentista, azul-dourado da Torre Orologio e, do outro lado da praça, a imponente Torre de San Marco. O dia está morno, o que nos dá coragem para subir pela escada os cerca de 90 metros até ao topo da Torre de San Marco. Daí a vista sobre Veneza é magnífica; está um dia límpido, o que, segundo já ouvimos comentar, nem sempre acontece; para lá do Gran Canal avistamos a igreja de San Giorgio Maggiore e o mosteiro que a circunda, na ilha de San Giorgio, um dos locais que temos programado para mais tarde. Regressamos à Plaza San Marco, desta vez de elevador.
Depois de uma breve discussão, acabo por deixar os meus companheiros de viagem num dos bares preferidos de Hemingway, o Harry’s Bar, a beber um tiziano* e vou ‘suspirar’ para outros lados. Nas traseiras do Palácio dos Doges imagino o desespero dos presos que faziam a sua última travessia do rio Palazzo, através da Ponte dos Suspiros. A impressionante ponte do século XVII levava-os aos escaldantes e desumanos piombi**; só permitindo, a quem cá fora lamentava a sorte dos prisioneiros, adivinhar os seus olhares angustiados e aterrorizados. Atordoada pela minha imaginação, nem sou capaz de apreciar a elegância renascentista da fachada da prisão. Refugio-me no Harry’s Bar e afogo a angústia num delicioso bellini***.
Retomamos a cruzada veneziana e passamos pelo Hotel Flora, onde, apaixonados pelo seu jardim, combinamos tomar o pequeno-almoço do dia seguinte. Atravessamos o rio San Moisé e seguimos pela Calle Largo 22 Marzo, assim chamada em homenagem à data em que os austríacos foram banidos da cidade, em 1848; Passamos pelo imponente Palácio da Bolsa e uma ruela leva-nos ao Teatro la Fenice. Pouco passa do meio-dia, mas a caminhada deixa-nos com fome; decidimos ir ao Poste Vecie (Correios Velhos, em português), famoso pelos tradicionais pratos venezianos de peixe e legumes.
Reservamos a tarde para o encontro com Giovanni Bellini, Andrea Mantegna, Ticiano, Paolo Veronese, Canaletto e Tiepolo, na Galleria dell’Academia e, com sorte, ainda temos tempo de visitar a Colecção Guggenheim, num palazzo que abre as suas ‘portas de água’ sobre o Gran Canal. A charmosa casa onde viveu Peggy Guggenheim reúne obras dos maiores autores de arte moderna, desde Chagall, a Kandisnsky, Klee, Magritte, Picasso ou Pollock.
No dia seguinte acordamos cedo e, depois do pequeno-almoço, atravessamos o Gran Canal, de gôndola, e dedicamos parte da manhã a explorar a zona do Dorsoduro e de San Pólo; descobrimos uma pitoresca oficina de gôndolas (Squero di San Trovaso), frescos de Veronese, na igreja de San Sebastian, pinturas de Tiepolo, na Scuola Grande dei Carmini, e acabamos por desembocar no mercado Santa Margherita, um contraste de cor com as suas bancas de produtos frescos. Estamos em plena zona comercial; avançamos mais um pouco e damos com o Mercado do Rialto, onde é possível encontrar de tudo, desde peixe, carne, legumes e todo o género de bugigangas. Em Veneza nunca se sabe o que nos vai surgir pela frente, depois de mais um canal, ao atravessar uma praça ou no fim de mais uma ruela; é sempre uma surpresa. A poucos metros de um mercado, eis que descobrimos uma igreja, logo a seguir, um palácio de arquitectura renascentista, um pouco mais adiante, um museu, talvez o Museu Correr, ou, quem sabe, apenas fachadas, mais ou menos bem conservadas, com janelas que quase se tocam. E os venezianos, que já se habituaram a ver a sua cidade quase permanentemente invadida por turistas de todos os cantos do mundo. O segredo é simples; basta deixarmo-nos ir ao sabor da ondulação suave dos canais, sem traçarmos grandes trajectos e evitando criar expectativas.
Deixamos os último dia para dar um passeio de barco que nos leva a Burano e à ilha dos vidreiros, Murano, onde não podemos deixar de visitar o Museo Vetrario (Museu do Vidro), e terminamos a nossa aventura veneziana numa praia do Lido. Esta ilha estreita foi palco do primeiro festival de cinema do mundo, em1932, que é ainda hoje, um dos momentos altos da vida mundano-cultural de Veneza e do mundo do cinema.
No final de mais um dia, do nosso último dia em Veneza, estamos esvaziados de palavras, mesmo que tivéssemos energia e vontade, não saberiamos o que dizer uns aos outros. Temos os olhos brilhantes de satisfação e um sorriso indecifrável estampado na cara; sentimos que a cidade faz agora parte de nós, agarrou-se à nossa pele, como uma paixão consumada, mas que nunca se vai esfumar. Veneza é assim mesmo, um lugar único no mundo que fica gravado na memória.


* “Tiziano” – cocktail com 2/3 de vinho Prosecco e 1/3 de sumo de uva preta.
** “Piombi” - celas com telhado de chumbo.
*** “Bellini” – cocktail com 2/3 de vinho Prosecco e 1/3 de sumo de pêssego.
In: Revista "FrontLine", Outubro, 2008

Sem comentários: